segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Pandemonia

 

E do nada começa inesperada quarentena. Sem aviso, sem planejamento, sem preparação daquelas que a gente imagina ou fica sabendo através de histórias de aventureiros. Fico pensando como deve estar passando Amir Klink, acostumado a fazer viagens insólitas, atravessando o oceano em barco a remo ou encalhado por mais de um ano nas geleiras antárticas. Para aqueles programas de quem já está com a vida ganha, que ele transforma em fonte de renda, tudo é cuidado em detalhes, o que vai comer, o quanto estocará de mantimentos e o que levará para passar o tempo.

Em casa, não preciso de nada disso. O mercado entrega em domicílio e tenho coisas para fazer por anos, sempre adiadas por falta de tempo, mas agora isso não é mais desculpa. Tempo é o que mais tenho. A diferença é que fui pego de surpresa. Não pensava em me confinar, e só o fiz por insistência da Bel, que temia por minha saúde. Dizia que pertenço ao grupo de risco, que a cada dia recebe mais integrantes, bastando estar vivo para se tornar vítima em potencial do vírus.

Como não esperava que o confinamento fosse durar tanto tempo, botei o computador na mochila, peguei os processos em andamento, e, no meio da tarde, peguei o rumo de casa. Entro no metrô estranhamente vazio e penso em mudar meus horários, para fugir do desconforto que encaro toda noite. Hoje já nem sei como as coisas funcionarão quando isso acabar, e dependendo de como acabar. Não espero mais nada. Deixo a vida correr e procuro não pensar muito nisso.

Sempre brinquei que gostaria de receber pena de prisão domiciliar para aproveitar tudo o que tenho em casa e não aproveito. Dos inúmeros livros que ainda não li ao livro que não escrevi, dos filmes que quero assistir às coleções que pedem por organização. Receitas que não experimentei, meditação, gravação de vídeos, enfim, um bocado de coisas que acreditava dependerem apenas de tempo.

A mulher sugere que eu faça um diário da quarentena. Virginiano incorrigível, não comecei porque quero detalhar tudo o que ocorreu desde o primeiro dia, mas não tenho como me lembrar dos detalhes e não consigo começar do meio. Comigo é assim: ou faço perfeito ou não faço nada, e a segunda opção está ganhando de lavada no confinamento.

Preciso de rotina, que é o que sempre reclamei de ter quando era obrigado, mas, agora, dono do meu nariz, fico mais perdido do que brasileiro quando assiste pronunciamento do presidente.

Estabeleço o roteiro do que vou fazer no dia seguinte, porque planejar e fazer no mesmo dia é desperdício de atividades, afinal não sei quanto tempo ficarei trancafiado dentro de casa. Se gastar todas as ideias hoje não sei o que vou fazer amanhã.

Acordo relativamente cedo, mesmo que seja para dormir depois, faço café e disputo com as cadelas quem tem mais cara de tédio. Acho que elas ganham, porque o objetivo delas depende de mim: querem passear na rua. Mesmo antes eu não tinha ânimo para isso, imagina então agora, que ganhei álibi oficial para não sair de casa. Uma delas é mais inteligente e aponta para a foto do presidente no jornal aberto para que elas façam cocô, na esperança de que eu ache tudo isso um complô dos governadores com a China. Como não arredo da minha decisão, ela caga na cabeça do capitão, engordando os índices de rejeição.

Olho para a estante e percebo que os livros há tempos ultrapassaram os lugares nas prateleiras, empilhados como presos no Brasil. Ao menos não pedem comida, não reclamam do calor e não curram os mais fraquinhos, até porque não devo ter mais nenhum livro fraquinho. O do Diogo Mainardi, que ganhei de inimigo oculto, foi dado para o livreiro da calçada. Por remorso, sempre que vejo o exemplar a cada dia mais desbotado de sol, compro qualquer um outro para que não fique chateado comigo, o que seria injusto, porque não fiquei aborrecido com quem me deu aquela chatice.

Penso que dar ordem a este caos pode ser uma ocupação gratificante. Certamente encontrarei livros repetidos. Rapidamente vejo três exemplares de Um Ano na Provence, de Peter Mayle, perfilados como trigêmeos de classe média, usando roupas idênticas e com postura de abestados.

Assim que acabar de ler a pilha que está na cabeceira da cama me animo e cuido disso, o que deve demorar, já que Bel está infiltrando livros no meio dos que escolhi. Aqui em casa impera o inverso da censura: ao invés de retirar, são incluídos novos livros. Então me vejo agora às voltas com 21 Lições para o Século 21, esperançoso que o século siga adiante. Ontem li a entrevista com Harari, o autor, e parece que ele também está certo disso.

Há anos não assisto televisão, não sei se parei antes que ela me deixasse burro muito burro demais, mas me sinto aliviado por não entender nada do que se refira ao BBB, que penso ter regras mais difíceis do que jogo do bicho. Também fico perdido quando determinada reportagem no Fantástico vira assunto na segunda-feira. Recentemente, um médico que eu julgava ser unanimidade nacional, estava sendo escrachado por ter abraçado um travesti. Soube depois que havia cometido um crime bárbaro (o travesti, não o médico).

Só por isso já seria motivo mais do que suficiente para não readquirir um hábito há tanto abandonado. Penso que seria pior do que voltar a fumar. Pelo som que vem dos apartamentos vizinhos, devo ser o único a não preencher o tempo com a televisão. Aliás, acho que ela mais joga fora do que ocupa o tempo.  

Não deixo o aparelho de TV desligado. Assisto filmes, clipes e algumas reportagens estrangeiras que estejam disponíveis. Gosto da RAI italiana, mas não tenho este canal, o que não faz diferença porque não entendo nada de italiano. Vejo, vez ou outra, pela internet. O idioma italiano é chamado de língua dos anjos, por causa da beleza e da sonoridade. Do jeito que as coisas andam por lá, acho que os anjos têm muito a fazer.

Uma vez me perguntaram como eu me informava, já que não assisto telejornais. Respondi que era exatamente por isso que me considero informado. Com a insistência, falei que me atualizava pelo Intercept Brasil, pela TV 247, pelo Público, jornal de Portugal, pela Folha e mais alguns informativos. Senti que, por precaução, afastaram as crianças de mim. Vai que eu estivesse com fome.

Para não perder a referência, aconselham que mantenhamos o ritmo de antes da quarentena, o que acho difícil porque trabalhava dez horas por dia no escritório, para onde me deslocava de metrô, e almoçava em restaurantes do centro da cidade. Felizmente continuo a trabalhar e me visto para isso. É claro que não uso terno em casa, nem mesmo para videoconferências. Iria parecer artificial e pedante. Vivemos tempos de calamidade pública e há todo um protocolo para o  momento. Às vezes é complicado redigir peças jurídicas com um arfar insistente sob a cadeira. É a cadela que ainda não passeou, e se depender de mim não vai passear hora nenhuma, mesmo tendo cagado na foto do presidente. Não adianta me agradar. Não gosto de insistência.

Devo estar chato mesmo. Não me sinto um prisioneiro, porque posso sair se quiser. A diferença é que não quero. Olho pela janela e vejo perambulando pessoas de certa idade, melhor seria dizer de incerta idade, porque alguns não tem mais nem a plaqueta com a data da inauguração. Não sei o que velho gosta de fazer na rua, mas sei que garantem a necessidade de sair todos os dias, por isso saem do supermercado com o mínimo de coisas, para que acabe logo. Na farmácia perguntam pela embalagem que contenha o menor número de comprimidos. Fazer estoque significa cumprir a quarentena.

Velho adora dizer que já viveu demais, mas, quando a coisa aperta, procura o médico e o padre, para não deixar nenhum dos lados desguarnecidos. Este ano a Semana Santa não teve procissão e nem missa de Páscoa. Não duvido que alguns tenham pedido ao padre um atestado para apresentar no além.

Passei uns dias agoniado, com a internação do primeiro ministro inglês na UTI. Se ele morresse, com o que há de mais avançado ao seu dispor, ia acreditar que era uma questão de tempo para seguirmos o mesmo rumo. Não tenho simpatia por nenhum líder loiro de cabelo arrepiado que fala inglês. Só conheço dois, mas já é o bastante.

Cuidar do espírito estou conseguindo, mesmo não tendo convicção de que ele exista, mas do físico já é mais complicado. Comecei a praticar Qigong, uma suave sequência de movimentos criada na China, mas uma das cadelas, a menos inteligente     , cismou que é uma ameaça e me estraçalhou com selvagens dentadas.

Enfim, vou levando essa pandemia do jeito que der para levar. Um dia acaba, bem ou mal, mas acaba. Dizem que a humanidade será muito melhor depois disso tudo. Parece confortador, mas será que não falaram a mesma coisa para os dinossauros?


Rio de Janeiro/RJ, 14 de abril de 2020  (inscrita no concurso do 247)

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