domingo, 17 de janeiro de 2021

Couvert Artístico

Couvert é uma expressão francesa que significa cachê, ou seja, o acréscimo sobre a conta referente ao que se consumiu no restaurante. Geralmente, este couvert abrange serviços acessórios, tais como, guardanapos de pano, pedacinhos de pão, pastas e patês, azeitonas, geléias, enfim, tudo aquilo que possa valorizar o momento vivido, quando se esperava, apenas, uma refeição correta e drinques de qualidade aceitável. Tendo, então, o couvert deixado esta experiência inesquecível, não há quem reclame em desembolsar um pouco mais do que a gorjeta convencional, geralmente estipulada em dez por cento. Ultimamente, alguns estabelecimentos cismaram de estabelecer o percentual de doze por cento, sabe-se lá porque. Em bares, o número não é bem vindo, pois remete aos doze passos da técnica utilizada pelos alcoólicos anônimos, para que o vício da bebida seja abandonado de vez.


Há uns anos, fiz terapia com uma psicóloga encantadora. Pessoa simpática e inteligente. Entendia tudo o que eu estava sentindo, ou melhor, quase tudo. Nossas sessões aconteciam em sua casa e o cachorro era convidado a se retirar do recinto. Cachorro, hoje tenho dois e posso afirmar, não é bicho que entenda de conveniência terapêutica. Tão logo me animava a abrir meu coração, o pulguento começava a uivar e arranhar a porta. Por sorte, abrir o coração não trazia nada de relevante para a terapia, pois meus podres escondo na alma, e esta nem sei onde se esconde. De qualquer jeito, passava o resto da sessão imaginando como conseguiria calar aquele maldito na próxima semana. A terapeuta insistia que devíamos fazer duas sessões semanais. Por dentro eu pensava que podíamos enforcar aquele vira-latas metido a yorkshire. Aí, sim, faria até sessões diárias, sem me preocupar com aquela estopa escandalosa.


Por que mesmo falei da terapeuta? Lembrei. Ela tratava de alcoólatras e drogados, e sabia de cor o método dos doze passos. Como bebo desde os quinze anos, sempre tive pavor de que alguma coisa me fizesse mudar de ideia. Recentemente, li que Fabio Assunção continua frequentando baladas, mas bebendo apenas água. Confesso que tive pena. Que graça tem ouvir conversa de bêbado estando careta? Mesmo tonto, não tenho paciência para algumas pessoas em estado alterado, o que dirá, então, escutar alguém terrivelmente ébrio e eu limpo como um querubim. Dai cismei que o número doze não combina com bar. Principalmente se for para gorjeta.


Hoje, resolvemos passear com as cachorras e paramos no bar de uma amiga. Estava com tanto calor que não reparei na presença incômoda de um músico na porta, com banquinho, violão, amplificador e caixa de som vagabunda, ou seja, armado com o kit aporrinhação completo. O cara tinha bom repertório. Beto Guedes, Milton, Fagner, Belchior, Lulu Santos, dentre outros. Tenho uma restrição com Lulu Santos, desde que ele assumiu seu casamento com Clebson. Nada contra a relação com alguém do mesmo gênero, mas, tinha que ser Clebson? Tenho amigos casados com André, Ricardo, Rafael, Wanderley e até com Marcio Greick, mas com Clebson nenhum. Fico imaginando Lulu Santos contando para sua mãe que ia se casar com um homem. Dona Lulina deve ter falado que nunca acreditou naquele casamento com alguém chamada Scarlet Moon. Completou dizendo que esperava que agora fosse feliz, o que não durou até ele dizer que o companheiro se chamava Clebson. Nenhuma mãe merece isso. Os cartórios deveriam ser proibidos de registrar tais miscelâneas.


Mas isso não tem nada a ver com a aberração que veio hoje para estragar as músicas escolhidas para tocar. O repertório, como já disse, era razoável, mas penso que o músico deve conhecer o mínimo sobre o autor, o intérprete ou sobre a época em que a música foi feita. O cara cantava Feira Moderna como se referisse à feira da Glória. Tocava Como Uma Onda pensando na bebedeira de ontem à noite. Tinha boa vontade, mas não tinha voz, conhecimento musical, equipamento e bom senso. Como ninguém prestava atenção, aumentava o volume do amplificador até que a bendita instalação elétrica do bar desse pane e acabasse com a barulheira. Foi o bastante para pedirmos a conta e dar no pé. Continuo a beber em casa, com latido e sossego para escrever. É o que estou fazendo agora.


Não sei se entro em mais algum bar com música ao vivo. Soube que há músicos especializados em velórios. Geralmente, é apenas um violinista, mas acho muito esquisito. A Indonésia, país execrável, executou dois brasileiros por tráfico de drogas, mesmo sendo o país mais corrupto do mundo, onde os policiais traficam drogas nas penitenciárias, inclusive para os condenados à morte. O segundo executado, Rodrigo, foi enterrado no Paraná e o cortejo foi acompanhado por um violonista. Até que tocava bem, e assisti com certa comoção.


Se até um conterrâneo, covardemente fuzilado em um país de merda, teve direito a música decente, por que sou obrigado a passar por tamanho suplício?


Rio de Janeiro/RJ,  17 de janeiro de 2021



Nenhum comentário:

Postar um comentário