quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Passeio

Não sei quem inventou que cachorro tem que passear. Pior, inventaram e contaram para eles. Chego do treino, que também é uma invenção danada, doido para encostar o esqueleto na poltrona, e as cadelas começam a olhar com cara de quem está esperando algo. É claro que sei o que elas querem, mas me faço de bobo. Não adianta. Cachorro só é idiota quando lhe convém. Manda parar de latir para ver se obedece. Pede para não rasgar papel e espalhar os pedaços na sala. Parece que entendem o oposto. Não fazem nada que pedimos, mandamos, imploramos. Chego a pensar que não tem cérebro. Quando criança, na escola, duvidava da história de que animais são irracionais e que o homem é o único ser pensante. Depois passei a concordar, mas, hoje, já tenho minhas dúvidas.

Duas cadelas que passeiam pela manhã, por quase duas horas. Contratamos um passeador, ou melhor, tutor, que é o nome que hoje se dá à profissão. Voltam os três com a língua de fora. Ele se recupera logo e vai para casa. Elas ficam arfando e babando no chão. A assoalho está uma feiura só. Manchado de uma maneira que só raspando e passando cera de carnaúba. Melhor nem passar nada. No dia segunte tem mais passeio.


À noite somos nós que levamos. Saem de casa latindo  como se estivessem apanhando, o que não deixa de ser uma ideia tentadora. Chegam à rua nos arrastando. Não sei como não morrem enforcadas. Se descobrir o truque, vendo para os iranianos condenados à morte. Lá eles são pendurados pelo pescoço em uma grua até morrer. Demora, mas acabam morrendo,  de uma maneira horrível. Tão horrível quanto a lei daquele pessoal.


O passeio, na verdade, 


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Glória

De pé há mais de vinte minutos, me ajeito perto da porta do vagão para saltar em breve. O metrô está cheio e as paradas anteriores só serviram para trocar o número de pessoas que desembarcaram pelas que embarcaram. A penúltima estação antes do meu destino é anunciada. Como em todas as manhãs me impaciento e penso se não deveria ser suprimida esta inútil escala. Afinal, é comum que ali que ninguém entre ou saia do trem, exceto raríssimas exceções. Desconfio que a vida está se extinguindo na Glória.


Lambido pelo mar, agora empurrado para longe pelo aterro, o bairro já não guarda mais do que senão poucas lembranças de um passado de glória, talvez inspirado pela padroeira que lhe emprestou o nome. Do alto do outeiro, a santa contempla, desolada, a transformação do lugar em um amontoado de prédios tristes, despojados de seus momentos de 


terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Escrita

Comecei a fazer o curso de escrita de Henry Bugalho. Além de já ter lido parte de sua obra, assisto seus videos diariamente e sou membro de seu canal no YouTube. A gota dágua que faltava foi o curso ser oferecido pelo Instituto Conhecimento Liberta, de Eduardo Moreira e Jessé de Souza. Paguei a anuidade e tenho direito a qualquer curso ali disponibilizado, sem qualquer custo adicional. Vai de Mandarim a Marketing Digital, passando por Filosofia, Grego e tudo que a gente possa imaginar.


Não assisti a primeira aula porque me inscrevi depois, mas o video fica disponível e imediatamente assisti. De agora em diante vou assistir em tempo real, às quartas feiras, onze foras da manhã. No começo, estranhei porque estou acostumado com os videos diários e já fiquei esperando as espetadas nos negacionistas e outras aberrações da espécie humana. Não teve nada disso. Ali era para aprender a escrever. Embora eu escreva todos os dias, não significa que saiba escrever. Tem gente que joga bola todo dia e continua perna de pau. Para estes resta desistir ou jogar no Barra Mansa FC. 


A qualidade do escritor, dizem, é medida pelos seus leitores. Henry diz que escrever não nos torna escritores. Para isso é preciso mais um pouco. É necessário publicar e atrair leitores. Qualquer que seja o critério, o primeiro passo é escrever, claro. Só que para dar o primeiro passo, antes precisamos dominar as letras. Para dominar as letras, precisamos conhecê-las, e ler é única maneira. Só depois de muito ler a gente se credencia a escrever. Gostei muito quando ele disse que começamos a escrever quando a leitura transborda. É por aí mesmo. Quando leio, me encanto não apenas com o que está escrito, mas também com a forma como está escrito. Quando for escrever, é natural que venha um pouquinho dos estilos que mais gostei. Não é pecado fazer isso. Todos os escritores um dia se inspiraram em outro escritor, ou em outros, o que é mais provável.


Tudo isso, porém, são teses não absolutas. O primeiro livro escrito no mundo foi Dom Quixote, de Cervantes. E foi escrito na cadeia. De quem ele pegaria inspiração? Não é o livro mais lido no mundo. Perde para a bíblia, que duvido muito que seja lida por todos que a adquirem. Vejo bíblias enfeitando salas, mesas de trabalho, mesas de cabeceira e até painel de táxi, mas não sei se foram lidas. Geralmente estão amareladas e amassadas, mas penso que apenas foram manuseadas, como um amuleto. Conheci uma boa mulher, que tinha uma bíblia da Enciclopédia Barsa em lugar de destaque na sala de sua casa. Perguntei se havia lido e ela me respondeu que não porque ouviu dizer que quem lê a bíblia fica doido. Concordo em parte. Para mim quem lê aquele monte de histórias sem pé nem cabeça já é doido. Quem lê e tenta convencer ou outros a seguir o que está escrito ali, é doido contagioso, tipo coronavírus, só que sem vacina.


Estudei em um colégio Batista, não pela vocação religiosa, mas porque precisava passar de ano e o colégio católico não queria mais saber de mim, ainda bem, porque não aguentava mais receber ordens de homens de vestido. No colégio evangélico, fui tratado sem qualquer reserva. Sabiam que eu não era crente, mas tive que assinar um documento declarando que não tinha o hábito de fumar, e realmente não tinha o hábito. Tinha o vício de fumar, o que é muito diferente.

Todos os dias, tínhamos que frequentar uma assembléia, de pouco menos de meia hora, onde eram cantados hinos de louvor e lido um trecho da bíblia. Acho que essa história de dizer que a bíblia é o livro mais lido põe na conta os que ouvem quem lê, mesmo que não esteja prestando atenção. É mais ou menos como os mil gols do Romário, que contou até os que fez nas peladas de rua. Acho que é até pior. Deve ser como os mil gols do Tulio Maravilha, que contou também os replays passados na televisão.


Há uma pesquisa que diz que o segundo livro mais lido do mundo é o Livro Vermelho do Mao Tse Tung. Aquilo foi editado pelo governo e distribuido um para cada chinês. A conta foi feita assim, mesmo não considerando que a maior parte era de analfabetos. Mas na China falou está falado. Quem vai discordar? Ninguém entende o que eles falam.


Bem, vou continuar escrevendo. Qualquer dia disparo os textos para todas as redes sociais e conto como se fossem lidos. Deu certo com fake-news, mas texto para leitor de fake-news tem que ser curto e, de preferência, desenhado. Ainda não tenho esse talento. Acho que nem quero ter.



Rio de Janeiro/RJ, 26 de janeiro de 2021


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Faustão

Hoje, leio nos jornais que o apresentador Fausto Silva deixará a Globo no fim de 2021. Segundo a emissora, a iniciativa foi do ex-gordo e atual sem-graça. Conheci Fausto Silva quando ainda não era Faustão, tinha um programa noturno, no meio da semana, na TV Gazeta, inicialmente, e em seguida na Record, quando ainda não era o braço televisivo da Igreja Universal do Reino do Capeta. 


Era um programa verdadeiramente espontâneo, talvez até por necessidade. A falta de patrocinadores robustos não permitia grandes gastos e a ausência de cenário deslumbrante, bailarinas e elenco de peso era compensada pela capacidade de improviso de Fausto, este, sim, de peso. O nome Perdidos na Noite tinha tudo a ver. Não que eles estivessem perdidos naquela hora, mas os telespectadores, que só devem ter parado ali ao acaso. Uma das piadas de maior sucesso era quando ele dizia que na Globo ia começar um filmaço, para que quem quisesse assistir não perdesse o início. Desnecessário dizer que ninguém mudava de canal. O humor inusitado prendia o público, menor que o da Globo, mas, certamente, mais antenado (naquela época as televisões tinham antenas). 


O auditório era composto de gente como a gente, que não está ali para ver artistas globais. Alguém deve ter começado a mostrar cartazes e logo a brincadeira pegou. A câmera focava os mais engraçados, mesmo que fosse de humor politicamente incorreto. Por falar em político, em 1985 o presidente eleito indiretamente ainda não havia tomado posse por conta de uma série de infecções abdominais que o levariam a morte, depois de trapalhadas de médicos vaidosos e midiáticos. Este assunto deixava o Brasil tenso. O drama, que por si só já era forte, ganhava corpo com as transmissões do Antônio Britto, porta voz do primeiro governo civil depois de duas décadas verdes, diretamente do Hospital das Clínicas. Em uma noite, Paulinho da Viola foi ao Perdidos da Noite e, quando viu um dos cartazes, pegou um pedaço de papel e uma caneta para escrever os dizeres irreverentes: “Este programa está pior do que o intestino do Tancredo”.  Assim era o clima do Perdidos na Noite.


Depois de duas emissoras pequenas, o Perdidos ganhou notoriedade e foi para a Bandeirantes, onde começou a se pasteurizar. O cenário, que era legitimamente avacalhado, ganhou roupagem de improviso de butique, com escadas e objetos meticulosamente colocados paradar a impressão de que o improviso continuava. Ficou com jeito de roupa de jeca em quadrilha de colégio de classe média alta.Os cartazes eram feitos pela produção, em papelão colorido em recortados em formatos caprichados. Os dizeres eram tão ruins que não me lembro de nenhum.


Após o estágio de burguesia, a Globo arrebatou o Faustão, que é como ele próprio se denominava. Aí, o que estava ficando ruim piorou de vez. O cara virou um chato, careta, puxa-saco, enfim, tudo aquilo que a Globo consegue fazer com quem se dispõe a passar por isso, e ele parecia estar feliz em vender a alma ao diabo. (É a segunda vez que falo dele aqui, do capeta, não do Faustão. Vou fechar bem a janela antes de dormir. Vai que o chifrudo ache que estou querendo conhecer a fornalha)


Para não falar o nome pela terceira vez, acho que a negociação feita com aquele sujeito com cheiro de enxofre funcionou. O agora Faustão nunca viu tanto dinheiro na vida. Engordou, emagreceu, engordou de novo e emagreceu idem. Casou e descasou mil vezes. Frequentou Miami como se lá fosse um lugar interesante. Virou garoto-propaganda. Só não falou em política porque Luciano Huck chegou primeiro.


Não assisto televisão há anos. Creio que só devo ter visto o tal Domingão do Faustão umas duas ou três vezes, e não mais de cinco minutos. Soube de uns quadro bizarros, como o de um portador de nanismo que ele apelidou de Latininho, mas nunca cheguei a ver.


Antes, as pessoas se deprimiam no domingo à noite quando ouviam a música do Fantástico. Com o Faustão, a depressão começa mais cedo, com aquele vozeirão ecoando nos corredores.


Ainda me protejo sob a guarda da Netflix, da Amazon Prime e outras. Espero que esse sujeito não venha se aventurar nos canais de streaming. Ô Lôco Sô!



Rio de Janeiro/RJ, 25 de janeiro de 2021


domingo, 24 de janeiro de 2021

Passageiro

Nos primeiros dias de 2021, no aeroporto de Detroit, três passageiros espancaram um agente da Spirit Airlines que pediu para verificar seu suas bagagens de mão estavam dentro dos limites permitidos para embarque na cabine. Diante da recusa, o agente impediu o embarque e foi covardemente atacado, precisando ser levado para o hospital, dada a gravidade dos ferimentos.

Os passageiros foram detidos e não mais poderão voar por aquela companhia. Preovavelmente, serão processados, pagarão alguma indenização leve e o caso termina por aí. Quando começo este texto fazendo referência aos primeiros dias de 2021, a intenção foi a de chamar à atenção para um ato de selvageria que deveria soar estranho na entrada da terceira década do século 21.
Que o mundo parece andar para tras, isso é inegável. O ataque ao Capitólio foi a consagração  do ambiente de hostilidade que permeia as redes sociais e os debates políticos. O mais grave é que este comportamento é incentivado por líderes que deveria dar o exemplo contrário. Quando se poderia imaginar que o país que se arvora de guardião da democracia teria um presidente, democraticamente eleito, que não se conformaria com a derrota que pos fim ao seu projeto de reeleição. Não se conformar é seu direito, mas não quebrando as regras que exige de outros países.
O episódio de Detroit é o espelho de como caminha a humanidade. Aeroportos e aviões, há algum tempo, tem sido palco de cenas grotescas, e isto não se deve à popularização das viagens aereas. A maior parte dos protagonistas está situada naquela camada da sociedade onde se esperava maior civilidade. Ao contrário, é a casta que se acha superior que não se conforma em seguir regras ditadas por questões de segurança. Segurança para todos, inclusive para ela.
Até antes da pandemia, viajava a trabalho quase todas as semanas. Sendo vôos curtos e com estadias de, no máximo dois dias, muitas vezes levava apenas uma mochila, que acondicionava sob o assento dianteiro, para que os bagageiros superiores ficassem disponíveis aos passageiros que levavam malas de pequeno porte. Por vezes não contive minha indignação com usuários que embarcavam com três ou mais volumes e os acomodavam nos bagageiros, um ou lado do outro, não sobrando espaço para os que ainda não tinham ingressado na aeronave.
Certa vez, perguntei à comissária se a tripulação não podia exigir que as mochilas e bolsas fossem retiradas do compartimento superior e acondicionadas sob os assentos dianteiros, como é solcitado desde a fila de embarque, ao que a mesma respondeu que não há o que fazer quando o passageiro se recusa. Ou seja, prevalece a lei do mais esperto, já que se cristalizou o entendimento de que desrrespeitar a regra do convívio social é esperteza.
O que observo, e aí é só observação mesmo, é que as pessoas se sente diminuidas em acatar as instruções repassadas pelos comissários. Vivemos em um país com cacoete de farda. Talvez se a solicitação partisse  do comandante, ostentando quatro berimbelas, que é o nome que se dá às faixas nos ombros dos uniformes, as ordens seria acatadas de imediato. Brasileiro não respeita quem demonstra, pelo traje, que existem instâncias superiores. Chamar Comissária de Bordo de aeromoça é tão ultrapassado quanto vulgar. Comissários tem a missão principal, e são muito bem treinados para isso, de assegurar a segurança dos passageiros, em caso de ocorrências durante a viagem, inclusive acidentes.
Sinto vontade de intervir quando vejo o Comissário instruindo sobre a posição dos assentos, na decolagem e no pouso, a proibição do uso de celular, o recolhimento da mesa e a desobstrução da passagem, e, mesmo assim, a maioria dos passageiros se faz de surda e agem como se aquelas orientações fossem apenas uma sugestão.
A FAA (Federal Aviation Administration) anuncia que vai elevar o valor das multas e dar ordem de prisão a passageiros que não se comportem de acordo com as normas de segurança. Não haverá aviso prévio. Passa a vigorar tão logo se definam os parâmetros. Não gosto de autoritarismo, mas aqui é diferente.  Proteger todos não é autoritarismo. Desobedecer ostensivamente é abusar de um poder que não se tem.
Este tema me incomoda tanto que outras vezes a ele voltarei. Não duvido que, em muitos casos, o medo seja o motivo deste comportamento inadequado. Quem sabe a alma de um rato não se esconde sob a carcaça de um gorila.  

Rio de Janeiro/RJ, 24 de janeiro de 2021

sábado, 23 de janeiro de 2021

Escolhas

A cada dez livros de aconselhamento, muitas vezes conhecidos como auto-ajuda, nove falam da importância de se fazer boas escolhas. Ainda que não seja de imediato, esta escolha vai influenciar fatos futuros em nossas vida. Cada vez que acontecer algo, basta olhar para tras e vamos entender o porque do momento vivido. Parece conversa de doido em cima da roda do tempo, mas comecei a observar e vi que faz sentido.

O sujeito acorda com a porta de casa sendo esmurrada. Atende, de mau humor, e dá de cara com um oficial de justiça e dois soldados. Lê o documento que lhe é apresentado e percebe que vai ser despejado. Não amanhã nem na semana que vem. É agora. Se não tiver onde botar os móveis, estas vão para o meio da rua. O termo despejo é amplo. Vão despejar tudo que está no interior da casa, inclusive os moradores. Antes de praguejar, por a culpa na ex – mulher, que nunca fez nada para ajudar, no pai, que nunca o entendeu, na mãe, que o deixou mal acostumado com seus socorros financeiros e deixou esse mundo levando o direito à minguada pensão. Culpou o emprego, que detestava a ponto de abandonar sem ter outro em vista. 

Na calçada, olhando sem graça para os vizinhos e dando a desculpa que o caminhão de mudanças se atrasou, por isso os móveis estão espalhados ali, pensa até em se matar, ou melhor, não pensou para valer. Depois de umas lambadas da vida, a gente aprende que ruim com ela, pior sem ela. Morto não sente nada, o que significa que também não passa por coisas boas. Melhor continuar por aqui. Do nada, surge um amigo, igualmente desempregado, mas que se identifica como coach, que é muito mais digno. Contando suas desventuras, o que é desnecessário, com uma casa desmontada a céu aberto, responde a várias perguntas até que identifica que nada daquilo é castigo, praga ou coisas do gênero. Está ali porque fez a escolha de não pagar o aluguel. Cismou que dar dinheiro a quem não trabalha não era justo. A propriedade é invenção da humanidade. Quando o mundo começou, ninguém era dono de nada. Se vivesse naquele tempo, não pagaria aluguel e seus móveis não estariam na rua, até porque não existiriam móveis nem rua.

A conversa com o coach não foi de todo ruim. Continua sem ter para onde ir, mas está orgulhoso de ter provocado aquela situação. Se fosse um terremoto, estaria se lamuriando, ou nem isso. Como não há terremotos no Brasil, ele estaria em outro país, o Japão, talvez. Não sabendo falar japonês, ia se lamuriar por gestos, e aí haja talento para mímica. Agradece o conselheiro e pergunta o que faz agora, que já sabe que os acontecimentos são frutos de suas escolhas. Escolher, oras, apenas fazer novas escolhas. Se não souber o que escolher, que cuide da memória para se lembrar, daqui a um tempo, o que fez hoje. Pelo menos vai reforçar que sua vida não anda ao acaso.

Não pagou a consulta porque não tem um puto no bolso. O coach o tranquiliza dizendo que aquela sessão foi “pro-bono”,  ou seja, de graça. A maior parte dos coaches que conheço trabalham assim. Não sei do que vivem e como vivem. Onde moram e o que comem. Como acasalam e quantos nascem em cada ninhada. Há tempos não assisto televisão. Foi escolha feita no passado, mas agora não sei se ainda existe o Globo Repórter, que podera responder estas questões.

Nem sempre as escolhas levam tanto tempo para influenciar nosso presente. Hoje, acordei bastante estropiado, consequência de escolhas normalmente feitas nas sextas feiras à noite. Fiz café e passei geléia de morango em uma fatia de broa. Quando fui levar à boca, uma porção da geléia caiu na caneca de café. Bebi assim mesmo e ficou até gostoso, pelo menos ficou diferente. Neste momento, fiquei orgulhoso de minha escolha. Do jeito que eu estava, podia ter passado bosta da cadela no pão. Voltando ao coach, nada acontece por acaso.


Rio de Janeiro/RJ, 23 de janeiro de 2021


sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

A.I.D.S.

Guardar papel velho não deixa de ter suas vantagens, mesmo com os ácaros que nos atacam quando revolvemos as gavetas, caixas e pastas onde os guardamos (os papéis e os ácaros). Hoje, encontrei um exemplar, de julho de 1987, do jornal da Associação do Pessoal da Caixa Econômica, que trazia os nomes dos vencedores do concurso de literatura daquele ano. Fui classificado em segundo lugar, com o conto A.I.D.S., que deve ser lido considerando que os anos o envelheceram e as coisas não fazem mais tanto sentido. Naquele ano, a AIDS era uma doença mais tenebrosa do que hoje. Incurável e com enorme carga de preconceito. Pessoas que se diziam de bem, sequer dela falavam, como se as palavras fossem infectá-las. Daquele ano, a melhor lembrança que trago é o nascimento da minha doce Lara.

Nem que seja para matar a curiosidade, vou transcrever o conto que me valeu uma placa de premiação. A propósito, o terceiro lugar foi ara o conto Vida de Enlouquecer, do meu amigo Bira Porto, que nos deixou semana passada, de COVID, o vilão da vez. Vamos, então, ao meu conto:

- Papai, AIDS mata?

Aquela pergunta foi recebida pelo desembargador Fontana como um murro no estômago. Não pelo conteúdo da pergunta em si, mas pelo inusitado da situação, afinal, ele sempre se dispôs a manter diálogo com seus dois filhos e até disso faziam questão. Os assuntos, porém, eram muito diversos daquele contido na inesperada questão, afinal Rui (homenagem ao seu ídolo e inspirador) ainda não entrara na casa dos treze anos e já lhe fazia perguntas de tal calibre. Não se surpreenderia caso tivesse que responder sobre compositores clássicos, escritores ou outro assunto que julgasse necessário à boa formação cultural das crianças, afinal, nascido e criado em Belo Horizonte, bem ao estilo da tradicional família mineira, sempre buscara ilhar sua pequena prole nestes eruditos e, principalmente para as crianças, maçantes temas.

O pequeno Serafim, com seus parcos seis anos, já não ousava acompanhar as destrezas de seu outrora herói He-Man, pois a cada aventura assistida, correspondia uma longa preleção sobre os verdadeiros heróis da pátria amada, além, é lógico, da televisão ser desligada antes de terminado o episódio, pois, se dele dependesse, o super herói continuaria dando mais pontos no IBOPE do que Tiradentes ou Caxias, uma vez que estes nem ao menos mereceram ser personagens de desenhos animados.

Dentro desse clima, estilo Rádio MEC, o desembargador Fontana tentava formar sua descendência, ajudado pelo fato de não ter nenhum relacionamento com a vizinhança (se achava superior), que poderia subverter suas ideias, além de contar om o apoio da submissa esposa, Matilde, que não se atrevia a contestá-lo.

Ora, ora, pichorra, por que este governo não vai se preocupar com suas contas, ao invés de entronizar tão desagradável assunto em lares cristãos? Quem inventou essa malfadada campanha pela televisão, no mínimo, sofre de mal maior, e na cabeça.

- Mata ou não mata?

Diabos, como será mesmo que se safou aquele sujeito da história do “plebiscito” [1]? Bem, afinal a coisa não é tão grave quanto parece. O pirralho quer apenas saber se esta coisa é letal ou não, as circunstâncias em que a doença é adquirida não me foram perguntadas.

- Mata sim meu filho, mas não precisa falar neste assunto, porque em gente como nós essa doença não pega.

- Verdade mesmo?

- Não duvide de seu pai, Ruizinho.

Pronto, que martírio mais sem sentido ele havia criado. Com uma simples resposta, criada na hora, sem qualquer esforço de inspiração, voltava a reinar naquela casa o austero ambiente dos melhores lares da Savassi, lembrando-lhe a longínqua e saudosa Beagá.

De igual tranquilidade desfrutava o pequeno Rui, preparando-se para um despreocupado sono, satisfeito ao saber que a imunidade familiar, anunciada pelo pai, o livraria de uma vez por todas dos incômodos preservativos, que acabava de lançar pela lixeira.

 

Rio de Janeiro/RJ, 22 de janeiro de 2021



[1] Conto de Artur Azevedo (1855-1908)