Mesmo quatro anos após o referendo popular, o reino unido deixa a União Europeia com jeito de quem faz as coisas atabalhoadamente. O título Brexit 1 não significa que possa haver outras retiradas, mas a possibilidade de que o tema volte a ser tratado, dadas as inúmeras e inesperadas consequências de um divórcio após quase meio século de convivência relativamente fria, como costumam ser as relações com os ingleses. O máximo que pode acontecer se não escrever mais sobre este assunto é que o título ficará um pouco estranho, esperando continuação. Talvez tenha sido excesso de zelo para não parecer o Clube da Esquina, que não avisou nada e depois surgiu o Clube da Esquina 2. As capitanias dos portos também não batizam barcos com o número 1. Se surgir um xará, eles batizam com o número II, em algarismos romanos. Deve ser coisa do império romano.
Não sei como um povo tão sistemático deixa para a última
hora a aprovação de documento que traça as relações entre o reino unido e o
resto da Europa, que é como os ingleses devem se referir aos países localizados
na área continental. A definição de ilha para a Inglaterra deve ser um pedaço
de terra cercado de gente inferior por todos os lados.
Mesmo com tanta demora, o tal documento deixa muito a
desejar. Mil e duzentas páginas com aquele jeitão de estatuto de clube de golfe,
com muita retórica e pouca objetividade. Pela gravata de peixinhos exibida por
Boris Johnson no anúncio do acordo, a impressão que fica é a de que nada mais
relevante foi tratado do que o acordo de limitação de pesca pela Europa na
costa inglesa, mesmo que a atividade represente 0,01% do PIB da terra do Fish
and Chips.
Talvez pelo receio de que a saída do reino unido pudesse ser
o início do desmantelo da União Europeia, muitos brasileiros torceram para que
o Brexit não vingasse. Afinal, se entre países tão desenvolvidos a integração não
funcionar, dá para ter uma ideia do que pode acontecer no MERCOSUL, que, aliás,
assinou acordo de negociação iniciada há mais de vinte anos com a UE, o que não
significa muita coisa, pois ainda precisa ser referendado pelos parlamentos de
todos os países envolvidos, de ambos os continentes. Este é o tipo de acordo
que pode fazer água por recusa de quem está levando mais vantagem. A França já
sinalizou que não faz negócio com quem não preserva a natureza, Sei não, mas o
recado está dado.
Voltando ao Brexit, a impressão que dá é que a votação que decidiu
pela saída do reino unido da União Europeia teve aquele ingrediente que turbina
as eleições recentes no Brasil. As fake News. Pouco antes da pandemia, minha
mulher e eu visitamos uma amiga que reside em uma cidade pequena, próxima a Londres.
Ela nos contou que recebia propagandas pró Brexit dizendo que a União Europeia estava
estimulando a entrada de estrangeiros para tomar os empregos dos ingleses.
Ficou claro que as mensagens eram dirigidas às cidades do
interior, onde o eleitorado é mais conservador e permeável a esse tipo de boato
sem fundamento, principalmente se tiver componentes de xenofobia e de moralismo.
Associar integração regional ao desemprego e à recessão foi estratégia de
sucesso para os incentivadores do Brexit. O que consolidou a vitória, no
entanto, foi a abstenção dos progressistas, que, por acharem tão sem propósito
a saída do bloco regional, nem se preocuparam em votar, deixando o campo livre
para o voto do medo. Ali prosperou a
Falácia da Falsa Causalidade, já que a integração do Reino Unido à União
Europeia em nada contribuía para a extinção de postos de trabalho.
Nos chamou à atenção, entretanto, que os ingleses
contrários ao Brexit valorizavam muito o desenvolvimento comportamental que a
integração à União Europeia lhes proporcionou. Sempre acreditei que os ingleses
eram referência em educação e bons modos, mas parece que isso é lenda, como as
do Rei Arthur, do Barba Negra e de Robin Hood. A etiqueta inglesa seria denominada
no Brasil como algo para inglês ver.
De fato, não se pode acreditar muito nos modos de quem
matava seus próprios reis e rainhas com uma machadada no pescoço. Os machados
eram feitos especialmente para esse fim (fim mesmo), o que não humaniza em nada
a violência. Jane Grey, rainha por
apenas nove dias, foi decapitada na Torre de Londres, aos dezesseis anos, por ordem
de sua prima. Naquele tempo as discordâncias em família não ficavam apenas nos
grupos de whatsapp.
Na Inglaterra os pubs fecham cedo demais para os nossos
padrões. Não só para os nossos, mas como os de todo o mundo civilizado, e mundo
civilizado considero os países onde as pessoas bebem. Não dá para chamar de
civilizado um lugar onde a bebida é punida com a morte. Aqui até se tentou, com
as cervejas Cintra e Belco, mas houve quem resistiu e denunciou a tempo o
atentado.
O que faz, então, um inglês ao ser despachado do bar por
volta de sete da noite, horário em que o resto do mundo começa a beber? Para
não perder tempo, o londrino sai do trabalho mais cedo e vai, sem banho mesmo,
para o pub mais próximo. A cerveja é boa e a música melhor ainda, mas tudo tem
que ser muito rápido, até a azaração. Não dá para escolher pelo cheiro, porque
ninguém passou em casa para dar um trato nas intimidades.
O Fish and Chips era servido em folha de jornal. Algum
tempo depois, passou a ser em guardanapo estampado em imitação de jornal para
as pessoas não sentirem a diferença. Penso que com o Brexit devem voltar a
comer peixe com gosto de classificados ou de notícias de futebol.
Não sei o que vai acontecer daqui para a frente, e acho que
nem eles têm certeza, mas a Escócia já pediu que mantenham uma estrela acesa
porque em breve estará de volta. Talvez o Brexit não tenha o poder de desmoronar
a integração europeia, mas o próprio reino unido.
A Inglaterra tem mitos que a sustentam, e mitos são
imortais. Keith Richards e a Rainha Elizabeth II são a prova disso. Enquanto
houver cigarros e chá, a estabilidade está garantida.
Rio de Janeiro/RJ, 02 de janeiro de 2021
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