Acordo
muito cedo, todos os dias, não importa a hora em que tenha ido para a cama. É
um hábito relativamente novo. Antes só acordava cedo se precisasse, e nos fins
de semana compensava dormindo até tarde, o que hoje não consigo mais.
Gosto
muito da vida, e, ainda que dormindo também esteja vivo, não é a mesma coisa.
Gosto de olhar pela janela e ver o dia se abrindo para os milhares de
acontecimentos que irão encher as páginas dos jornais do dia seguinte e as
manchetes dos jornais digitais, tão logo ocorram.
Gosto
de ouvir os barulhos da manhã. Os cachorros latindo, quase sempre sem motivo.
Os porteiros conversando, sem qualquer compromisso com os limites físicos das
portarias de seus edifícios. As vassouras esfregando preguiçosamente as
calçadas. Os ônibus rugindo como se fossem voar, para, em seguida, dar uma
freada tão barulhenta quanto assustadora.
Acordado,
já não me lembro do aconchego da cama, que posso vir a sentir falta lá pela
tarde, quando me estico no sofá do escritório, nem que seja por
alguns minutos.
De
todas as sensações, a que mais me faz lembrar que a vida está chamando é o
cheiro do café. Chaleiras, bules e cafeteiras parecem disputar qual o aroma
mais forte será espalhado pelas redondezas. Antes que a loucura do cotidiano se
estabeleça, o cheiro do café predomina, e traz um alento para quem ainda não se
animou a viver, por mais um dia.
Café
transcende as manhãs. Muitas vezes vou dormir pensando no café do dia seguinte.
Não é vício, porque vício a gente só diz daquilo que faz mal. Se bem que tem
gente que é viciada em sexo e precisa
até frequentar clínica para se curar. Se eu fosse viciado em sexo jamais
procuraria tratamento. Talvez procurasse me cuidar melhor, para poder dar conta
do vício.
Café
é gosto, bom gosto. Durante o dia bebo muito café e observo as pessoas que
convido para tomarem um café comigo. Algumas recusam dizendo que já beberam
café demais naquele dia, outras falam que só bebem até o início da tarde,
porque senão não conseguem dormir à noite. Acho tão esquisito isso. Como o café
tomado às quatro horas da tarde pode
afetar o sono? Não será o que vem depois do café que atrapalha dormir?
A
pessoa bebe algumas xícaras de café durante o dia, nem tantas assim, trabalha
em um trabalho que não gosta, examina contas que não conseguirá pagar, conversa
com gente que não tem conversa, vai para casa espremido na condução, assiste
jornal da TV e fica idiotizada, não ao ponto de gostar da família, que apenas
tolera e, porque apenas tolera, pensa como será penoso aguentar o fim de semana
que se aproxima. Ainda bem que na sexta feira vai se embriagar. Será que é
mesmo o café que tira o sono?
Café
não me tira o sono. O que me tira o sono é falta de sono, mas se eu falar isso
para o médico ou para a terapeuta eles vão dizer que falta de sono tem um
motivo. Também acho que tem, só não sei qual. Se eles descobrirem vão acabar me
contando, então não preciso me preocupar, até porque preocupação tira o sono.
Acho
que não preciso dormir tudo de uma vez. Se tiver uma cota de sono e usar da
maneira que achar melhor dá na mesma. Posso ter um número de horas para usar
durante a semana, e a divisão fica por minha conta. Se bem que o ideal deve ser
por dia, para não ficar arrastando o saldo e não ter como pagar. É igual a
cartão de crédito, que a gente parcela pensando no presente e se arrepende no
futuro. Não consigo me imaginar chegando no sábado e ainda ter trinta horas
para dormir.
Minha
avó dormia aos poucos. Na soma devia dormir até mais de oito horas por dia, mas
não de uma vez só. Deitava cedo (ou se recolhia cedo, como diziam as pessoas
antigas como ela), acordava quando os outros ainda não haviam dormido,
provocava uma reflexão, que todos acolhiam, já que quem acaba de acordar deve
ter buscado sabedoria no sono, e depois voltava para a cama.
Acordava
bem cedo, provavelmente para fazer café, refazia sua conta de horas de sono a
cumprir e planejava como iria usá-la. Como era muito religiosa, ninguém sabia
se estava rezando ou dormindo. Na dúvida, não a perturbavam. Sabe-se lá com
quem estaria falando? Se fosse um santo de baixa hierarquia, daqueles que só se
santificaram por estar no lugar errado e na hora errada, talvez não houvesse
maiores consequências, mas ela parecia ser influente no reino divino e não
perderia tempo ouvindo reclamação de quem se sentiu injustiçado por enfrentar,
acorrentado e de cabeça para baixo, um tigre faminto no Coliseu.
Acho
que ela conversava mesmo era com Ele, que, por indulgência, ou pouca paciência,
a manteve aqui por cento e sete anos, bonita como devem ser as avós e
conformada como os longevos, ao pressentir que o tempo do café está por
terminar.
Rio, abril de 2018