quarta-feira, 25 de abril de 2018

Café


Acordo muito cedo, todos os dias, não importa a hora em que tenha ido para a cama. É um hábito relativamente novo. Antes só acordava cedo se precisasse, e nos fins de semana compensava dormindo até tarde, o que hoje não consigo mais.

Gosto muito da vida, e, ainda que dormindo também esteja vivo, não é a mesma coisa. Gosto de olhar pela janela e ver o dia se abrindo para os milhares de acontecimentos que irão encher as páginas dos jornais do dia seguinte e as manchetes dos jornais digitais, tão logo ocorram.

Gosto de ouvir os barulhos da manhã. Os cachorros latindo, quase sempre sem motivo. Os porteiros conversando, sem qualquer compromisso com os limites físicos das portarias de seus edifícios. As vassouras esfregando preguiçosamente as calçadas. Os ônibus rugindo como se fossem voar, para, em seguida, dar uma freada tão barulhenta quanto assustadora.

Acordado, já não me lembro do aconchego da cama, que posso vir a sentir falta lá pela tarde, quando me estico no sofá do escritório, nem que seja por alguns minutos.

De todas as sensações, a que mais me faz lembrar que a vida está chamando é o cheiro do café. Chaleiras, bules e cafeteiras parecem disputar qual o aroma mais forte será espalhado pelas redondezas. Antes que a loucura do cotidiano se estabeleça, o cheiro do café predomina, e traz um alento para quem ainda não se animou a viver, por mais um dia.

Café transcende as manhãs. Muitas vezes vou dormir pensando no café do dia seguinte. Não é vício, porque vício a gente só diz daquilo que faz mal. Se bem que tem gente que  é viciada em sexo e precisa até frequentar clínica para se curar. Se eu fosse viciado em sexo jamais procuraria tratamento. Talvez procurasse me cuidar melhor, para poder dar conta do vício.

Café é gosto, bom gosto. Durante o dia bebo muito café e observo as pessoas que convido para tomarem um café comigo. Algumas recusam dizendo que já beberam café demais naquele dia, outras falam que só bebem até o início da tarde, porque senão não conseguem dormir à noite. Acho tão esquisito isso. Como o café tomado às quatro horas da tarde  pode afetar o sono? Não será o que vem depois do café que atrapalha dormir?

A pessoa bebe algumas xícaras de café durante o dia, nem tantas assim, trabalha em um trabalho que não gosta, examina contas que não conseguirá pagar, conversa com gente que não tem conversa, vai para casa espremido na condução, assiste jornal da TV e fica idiotizada, não ao ponto de gostar da família, que apenas tolera e, porque apenas tolera, pensa como será penoso aguentar o fim de semana que se aproxima. Ainda bem que na sexta feira vai se embriagar. Será que é mesmo o café que tira o sono?

Café não me tira o sono. O que me tira o sono é falta de sono, mas se eu falar isso para o médico ou para a terapeuta eles vão dizer que falta de sono tem um motivo. Também acho que tem, só não sei qual. Se eles descobrirem vão acabar me contando, então não preciso me preocupar, até porque preocupação tira o sono.

Acho que não preciso dormir tudo de uma vez. Se tiver uma cota de sono e usar da maneira que achar melhor dá na mesma. Posso ter um número de horas para usar durante a semana, e a divisão fica por minha conta. Se bem que o ideal deve ser por dia, para não ficar arrastando o saldo e não ter como pagar. É igual a cartão de crédito, que a gente parcela pensando no presente e se arrepende no futuro. Não consigo me imaginar chegando no sábado e ainda ter trinta horas para dormir.

Minha avó dormia aos poucos. Na soma devia dormir até mais de oito horas por dia, mas não de uma vez só. Deitava cedo (ou se recolhia cedo, como diziam as pessoas antigas como ela), acordava quando os outros ainda não haviam dormido, provocava uma reflexão, que todos acolhiam, já que quem acaba de acordar deve ter buscado sabedoria no sono, e depois voltava para a cama.

Acordava bem cedo, provavelmente para fazer café, refazia sua conta de horas de sono a cumprir e planejava como iria usá-la. Como era muito religiosa, ninguém sabia se estava rezando ou dormindo. Na dúvida, não a perturbavam. Sabe-se lá com quem estaria falando? Se fosse um santo de baixa hierarquia, daqueles que só se santificaram por estar no lugar errado e na hora errada, talvez não houvesse maiores consequências, mas ela parecia ser influente no reino divino e não perderia tempo ouvindo reclamação de quem se sentiu injustiçado por enfrentar, acorrentado e de cabeça para baixo, um tigre faminto no Coliseu.

Acho que ela conversava mesmo era com Ele, que, por indulgência, ou pouca paciência, a manteve aqui por cento e sete anos, bonita como devem ser as avós e conformada como os longevos, ao pressentir que o tempo do café está por terminar.


Rio, abril de 2018

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Ruptura


Nas duas apresentações de Jorge Drexler, no Rio e em São Paulo, um trecho de música me calou mais fundo por sua verdade absoluta. “Nada es más simples, No hay otra norma: Nada se pierde, Todo se transforma.”

De forma inspirada, o talentoso uruguaio repetiu sob aplausos a frase de Lavoisier, que veio lhe custar a cabeça, do Lavoisier e não do Drexler,  na sequência da Revolução Francesa, mesmo com toda a comunidade científica européia implorando clemência a Coffinhal, que respondeu que a França não precisava de cientistas. Ainda bem que precisamos de arte.

O que é a transformação, se não a ruptura? Nada se transforma se não houver o fim de algo que, mantido, impediria a evoução e, talvez, a passagem do tempo. Novos tempos são o efeito do fim dos velhos tempos.

A aceitação do novo é dolorosa para quem já acumula experiência com perdas, e a iminência de mais uma se faz sofrida, quando deveria se mostrar como oportunidade de renovação.

Mas a contagem da vida se faz, a partir de um ponto de inflexão, de forma regressiva, e o novo traz medo, se visto como a implacável caminhada para o ponto final, ao invés de mais um dos pontos parágrafos que dão fôlego a uma história com muito ainda a ser contada.

Ruptura abre caminho para uma nova vida, e novas vidas chegam em  meio a lágrimas. Nascemos chorando, até que sejamos aquecidos e alimentados, quando então experimentamos o conforto do aconchego. A partir daí, vivemos para um mundo novo, rompidos do cordão umbilical.

Rupturas devem ser vistas como degraus, que amenizam o esforço da subida. Finda uma etapa, passamos para a próxima, e a vida se faz entre as duas. Reservamos ao passado um lugar em que possa ser acessado, quando precisar e se precisar. Não é algo para ser remexido o tempo todo. Se tivéssemos que andar olhando para trás, teríamos olhos na nuca.

Transformar o fim em recomeço é viver para sempre, é transformar perdas em ganhos. Se a vida insiste em tirar, insistimos em repor. Teremos então uma existência sempre renovada, com os mesmos anseios que antecedem o novo, que deixam a respiração entrecortada e o coração descompassado. Quem precisa de rotina o tempo todo?

Separações escondem o outro lado da dor. A despedida do viajante ofusca a descoberta. O adeus a um relacionamento deve ser breve, para que outro surja sem os vícios do que se foi. Não é o fim que nos prende. Nós que nos prendemos ao fim.

Romper é ter coragem. Coragem de pensar, de refletir, de encontrar, de se encontrar. É ter coragem de viver. E a vida só vem após a ruptura.

Rio, abril de 2018

terça-feira, 10 de abril de 2018

Cadernos e Canetas


 Um escritor argentino relata sua mania por cadernos. Não consegue sair de uma livraria sem comprar um ou mais, mesmo que não tenha a menor idéia do que fará com a coleção que já toma conta de sua casa.

Acho muito engraçado o jeito de contar coisas do dia-a-dia como se só acontecessem com ele. Essa compulsão por cadernos me faz rir por desespero, acredito, porque também não sei mais o que faço com as dezenas que invadem minhas mesas, gavetas e armários.

Se estivessem escritos, ainda que incompletos, não me assustaria a ponto de acreditar ser o sintoma de alguma patologia não descoberta, mas raros são os que estão minimamente usados. A maioria é tratada com tamanho cuidado, como se fossem filhos a quem jamais permitiria que se sujassem, principalmente com tinta de caneta.

Não apenas os cadernos, mas blocos e cadernetas também são quase uma obsessão. Vejo neles características diferentes que não existem, a não ser no meu desejo de que cada um tivesse sua própria identidade. Já comprei cadernos por me impressionar com a beleza inédita de sua capa, da encadernação incomum, da lombada e do cheiro. Levei-o com tamanho cuidado até chegar em casa e botá-lo junto a outro, idêntico.

Cadernos não se enchem sozinhos. Precisam de mãos e canetas. Mãos já as tenho, e canetas também, mas, para um caderno especial, não pode ser qualquer uma, e a busca da pena ideal se transforma em mais andança, em mais procura, em busca daquilo que não se sabe o que é.

Não há papelaria próxima que não visite sempre. E sempre pode significar até mais de uma vez no mesmo dia. Já não me constranjo com o olhar levemente piedoso que vendedores mais acostumados lançam, e já não se dispõem a entender o que pretendo.

Quando um vendedor se aproxima e pergunta se quero alguma ajuda, respondo que não. Antes dizia obrigado, só estou dando uma olhada. Depois suprimi a parte em que estou dando uma olhada, porque isso ele pode concluir. Depois parei de dizer obrigado, pois a educação parece liberar um tipo de feromônio.

Todas as vezes em que fui gentil para dizer que não precisava de nada, o vendedor (ou a vendedora, para explicar e descaracterizar que a coisa tenha a ver com gênero) se sentia de tal forma atraído que disputava com minha sombra para ver quem ficava mais próximo.

Agora, digo não, um seco não e, sem maiores explicações, começo a olhar os mais diferentes itens, causando embaraço nos atendentes, que, mesmo sumariamente dispensados, continuam a me observar com segura distância.

Às vezes, pego uma coisa qualquer e examino mais detidamente. Da mesma forma que minha cachorra, quando dou a entender que repartirei o que estou comendo, um vendedor mais ousado se aproxima perigosamente e passa a dar explicações (a cachorra não dá explicações, apenas late). Nessa hora largo tudo e vou para o outro extremo da loja, interrompendo a ladainha e deixando que fale sozinho.

Ha pouco tempo, um deles começou a me explicar o que tinha dentro da caixa que levantei. Devo ter cara de tapado, pois a tampa tinha a foto de um trem e, com letras garrafais, a expressão Trem Elétrico. Quando falei que tinha uma leve desconfiança de que era um trem, ele me explicou que era de brinquedo. Se não me avisasse, talvez estivesse lá até agora, esperando a hora de embarcar.

Voltando aos cadernos e as canetas, os dois tem algo em comum, servem para escrever, já que desenhar não é minha melhor habilidade. Mesmo que minha vida fosse tão segmentada, a ponto de não poder ser descrita em apenas um caderno e necessitasse de cores e traços diferentes, ainda assim quarenta cadernos e cinquenta canetas pareceria um exagero, mas é um pouco menos do que tenho.

Além de canetas tinteiro, que me deixam com os dedos azuis como os de um avatar, esferográficas de hotéis transbordam das canecas que deixaram seu lugar na cozinha e foram transferidas para o serviço burocrático. Passam anos espremidas e de cabeça para baixo, na esperança de que assim se mantenham funcionais, como me ensinaram. Com honrosas exceções, quando convocadas a retornar à atividade se vingam deixando apenas um arranhão no papel, sem qualquer vestígio de tinta.

Se mesmo depois de várias tentativas só restar um monte de folhas rasgadas, são deslocadas para uma gaveta e esquecidas por mais algum tempo, até que uma sanha organizadora se manifeste e eu as mande para longe do meu alcance. Raras são as que vão para a lata do lixo. Porteiros são quase sempre os agradecidos receptadores das inúteis.

Ainda por muito tempo passo pela portaria e vejo algumas anotações, com letras pontilhadas em papéis amarrotados, e percebo que lhes foi dada uma última chance de mostrar serviço. Algumas passam pelo suplício das bruxas da inquisição e tem sua ponta esquentada por isqueiros, para ver se a tinta volta a fluir ou talvez para se livrar de alguma possessão.

Todas, invariavelmente, estão mastigadas como se saíssem de uma aula de escrita criativa para cachorros loucos. Não sei, mas acho que eram mais felizes comigo, mesmo viradas para baixo e espremidas na caneca.

Manias custam dinheiro, não só para gastar nas papelarias como também para pagar psicólogos. Minha terapeuta pode me ajudar em outras questões, mas não nesta, pelo menos é o que sua mesa cheia de blocos e canetas dá a entender.

Mesmo quando em sofrido desprendimento dou um de meus cadernos, desperto um lado reprovável, até então oculto, de minha personalidade: a cleptomania. Minha filha recebeu uma caderneta que eu havia comprado para alguma ocasião especial. Ia para um evento importante e imaginei que faria bonito com o presente. Mas, heresia das heresias, se esqueceu de levar o mimo e fez as anotações no celular. Da mesma forma como foi, a caderneta voltou, desta vez surrupiada, e hoje, segura e reconciliada comigo, espera a tal ocasião especial.

Poderia estar escrevendo agora com uma antiga caneta tinteiro Parker 51, no caderno Moleskine com encadernação de luxo que dormita em minha mesa há mais de dois anos. Falta coragem para despertá-lo de seu sono descomprometido e correr o risco de fazer com que se sinta incapaz, como deve acontecer com seus antecessores, que, após duas ou três páginas escritas, foram deixados de lado. Deve ser como o abrupto rompimento de um amor, ou como uma broxada, onde os dois se sentem culpados.

Às vezes penso que a mania de perfeição é inimiga da criatividade. Não fosse por isso, escreveria furiosamente e sem remorso, dando trabalho a cadernos e canetas. Não me prenderia em arroubos de afeto e apego, mas, por outro lado, este texto não existiria.

Sei não, acho mesmo que a inspiração vem da vida, e vida sem manias não tem graça. Já vi muita gente rindo de maluco, mas nunca de psiquiatra.

Rio, março de 2018