sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

A.I.D.S.

Guardar papel velho não deixa de ter suas vantagens, mesmo com os ácaros que nos atacam quando revolvemos as gavetas, caixas e pastas onde os guardamos (os papéis e os ácaros). Hoje, encontrei um exemplar, de julho de 1987, do jornal da Associação do Pessoal da Caixa Econômica, que trazia os nomes dos vencedores do concurso de literatura daquele ano. Fui classificado em segundo lugar, com o conto A.I.D.S., que deve ser lido considerando que os anos o envelheceram e as coisas não fazem mais tanto sentido. Naquele ano, a AIDS era uma doença mais tenebrosa do que hoje. Incurável e com enorme carga de preconceito. Pessoas que se diziam de bem, sequer dela falavam, como se as palavras fossem infectá-las. Daquele ano, a melhor lembrança que trago é o nascimento da minha doce Lara.

Nem que seja para matar a curiosidade, vou transcrever o conto que me valeu uma placa de premiação. A propósito, o terceiro lugar foi ara o conto Vida de Enlouquecer, do meu amigo Bira Porto, que nos deixou semana passada, de COVID, o vilão da vez. Vamos, então, ao meu conto:

- Papai, AIDS mata?

Aquela pergunta foi recebida pelo desembargador Fontana como um murro no estômago. Não pelo conteúdo da pergunta em si, mas pelo inusitado da situação, afinal, ele sempre se dispôs a manter diálogo com seus dois filhos e até disso faziam questão. Os assuntos, porém, eram muito diversos daquele contido na inesperada questão, afinal Rui (homenagem ao seu ídolo e inspirador) ainda não entrara na casa dos treze anos e já lhe fazia perguntas de tal calibre. Não se surpreenderia caso tivesse que responder sobre compositores clássicos, escritores ou outro assunto que julgasse necessário à boa formação cultural das crianças, afinal, nascido e criado em Belo Horizonte, bem ao estilo da tradicional família mineira, sempre buscara ilhar sua pequena prole nestes eruditos e, principalmente para as crianças, maçantes temas.

O pequeno Serafim, com seus parcos seis anos, já não ousava acompanhar as destrezas de seu outrora herói He-Man, pois a cada aventura assistida, correspondia uma longa preleção sobre os verdadeiros heróis da pátria amada, além, é lógico, da televisão ser desligada antes de terminado o episódio, pois, se dele dependesse, o super herói continuaria dando mais pontos no IBOPE do que Tiradentes ou Caxias, uma vez que estes nem ao menos mereceram ser personagens de desenhos animados.

Dentro desse clima, estilo Rádio MEC, o desembargador Fontana tentava formar sua descendência, ajudado pelo fato de não ter nenhum relacionamento com a vizinhança (se achava superior), que poderia subverter suas ideias, além de contar om o apoio da submissa esposa, Matilde, que não se atrevia a contestá-lo.

Ora, ora, pichorra, por que este governo não vai se preocupar com suas contas, ao invés de entronizar tão desagradável assunto em lares cristãos? Quem inventou essa malfadada campanha pela televisão, no mínimo, sofre de mal maior, e na cabeça.

- Mata ou não mata?

Diabos, como será mesmo que se safou aquele sujeito da história do “plebiscito” [1]? Bem, afinal a coisa não é tão grave quanto parece. O pirralho quer apenas saber se esta coisa é letal ou não, as circunstâncias em que a doença é adquirida não me foram perguntadas.

- Mata sim meu filho, mas não precisa falar neste assunto, porque em gente como nós essa doença não pega.

- Verdade mesmo?

- Não duvide de seu pai, Ruizinho.

Pronto, que martírio mais sem sentido ele havia criado. Com uma simples resposta, criada na hora, sem qualquer esforço de inspiração, voltava a reinar naquela casa o austero ambiente dos melhores lares da Savassi, lembrando-lhe a longínqua e saudosa Beagá.

De igual tranquilidade desfrutava o pequeno Rui, preparando-se para um despreocupado sono, satisfeito ao saber que a imunidade familiar, anunciada pelo pai, o livraria de uma vez por todas dos incômodos preservativos, que acabava de lançar pela lixeira.

 

Rio de Janeiro/RJ, 22 de janeiro de 2021



[1] Conto de Artur Azevedo (1855-1908)

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