E do nada começa inesperada
quarentena. Sem aviso, sem planejamento, sem preparação daquelas que a gente
imagina ou fica sabendo através de histórias de aventureiros. Fico pensando
como deve estar passando Amir Klink, acostumado a fazer viagens insólitas,
atravessando o oceano em barco a remo ou encalhado por mais de um ano nas
geleiras antárticas. Para aqueles programas de quem já está com a vida ganha,
que ele transforma em fonte de renda, tudo é cuidado em detalhes, o que vai
comer, o quanto estocará de mantimentos e o que levará para passar o tempo.
Em casa, não preciso de nada
disso. O mercado entrega em domicílio e tenho coisas para fazer por anos,
sempre adiadas por falta de tempo, mas agora isso não é mais desculpa. Tempo é
o que mais tenho. A diferença é que fui pego de surpresa. Não pensava em me
confinar, e só o fiz por insistência da Bel, que temia por minha saúde. Dizia
que pertenço ao grupo de risco, que a cada dia recebe mais integrantes,
bastando estar vivo para se tornar vítima em potencial do vírus.
Como não esperava que o
confinamento fosse durar tanto tempo, botei o computador na mochila, peguei os
processos em andamento, e, no meio da tarde, peguei o rumo de casa. Entro no
metrô estranhamente vazio e penso em mudar meus horários, para fugir do
desconforto que encaro toda noite. Hoje já nem sei como as coisas funcionarão
quando isso acabar, e dependendo de como acabar. Não espero mais nada. Deixo a
vida correr e procuro não pensar muito nisso.
Sempre brinquei que gostaria de
receber pena de prisão domiciliar para aproveitar tudo o que tenho em casa e
não aproveito. Dos inúmeros livros que ainda não li ao livro que não escrevi,
dos filmes que quero assistir às coleções que pedem por organização. Receitas
que não experimentei, meditação, gravação de vídeos, enfim, um bocado de coisas
que acreditava dependerem apenas de tempo.
A mulher sugere que eu faça um
diário da quarentena. Virginiano incorrigível, não comecei porque quero
detalhar tudo o que ocorreu desde o primeiro dia, mas não tenho como me lembrar
dos detalhes e não consigo começar do meio. Comigo é assim: ou faço perfeito ou
não faço nada, e a segunda opção está ganhando de lavada no confinamento.
Preciso de rotina, que é o que
sempre reclamei de ter quando era obrigado, mas, agora, dono do meu nariz, fico
mais perdido do que brasileiro quando assiste pronunciamento do presidente.
Estabeleço o roteiro do que
vou fazer no dia seguinte, porque planejar e fazer no mesmo dia é desperdício
de atividades, afinal não sei quanto tempo ficarei trancafiado dentro de casa.
Se gastar todas as ideias hoje não sei o que vou fazer amanhã.
Acordo relativamente cedo,
mesmo que seja para dormir depois, faço café e disputo com as cadelas quem tem
mais cara de tédio. Acho que elas ganham, porque o objetivo delas depende de
mim: querem passear na rua. Mesmo antes eu não tinha ânimo para isso, imagina
então agora, que ganhei álibi oficial para não sair de casa. Uma delas é mais
inteligente e aponta para a foto do presidente no jornal aberto para que elas
façam cocô, na esperança de que eu ache tudo isso um complô dos governadores
com a China. Como não arredo da minha decisão, ela caga na cabeça do capitão,
engordando os índices de rejeição.
Olho para a estante e percebo
que os livros há tempos ultrapassaram os lugares nas prateleiras, empilhados
como presos no Brasil. Ao menos não pedem comida, não reclamam do calor e não curram
os mais fraquinhos, até porque não devo ter mais nenhum livro fraquinho. O do
Diogo Mainardi, que ganhei de inimigo oculto, foi dado para o livreiro da
calçada. Por remorso, sempre que vejo o exemplar a cada dia mais desbotado de
sol, compro qualquer um outro para que não fique chateado comigo, o que seria
injusto, porque não fiquei aborrecido com quem me deu aquela chatice.
Penso que dar ordem a este
caos pode ser uma ocupação gratificante. Certamente encontrarei livros
repetidos. Rapidamente vejo três exemplares de Um Ano na Provence, de Peter
Mayle, perfilados como trigêmeos de classe média, usando roupas idênticas e com
postura de abestados.
Assim que acabar de ler a
pilha que está na cabeceira da cama me animo e cuido disso, o que deve demorar,
já que Bel está infiltrando livros no meio dos que escolhi. Aqui em casa impera
o inverso da censura: ao invés de retirar, são incluídos novos livros. Então me
vejo agora às voltas com 21 Lições para o Século 21, esperançoso que o século siga
adiante. Ontem li a entrevista com Harari, o autor, e parece que ele também está
certo disso.
Há anos não assisto televisão,
não sei se parei antes que ela me deixasse burro muito burro demais, mas me
sinto aliviado por não entender nada do que se refira ao BBB, que penso ter
regras mais difíceis do que jogo do bicho. Também fico perdido quando determinada
reportagem no Fantástico vira assunto na segunda-feira. Recentemente, um médico
que eu julgava ser unanimidade nacional, estava sendo escrachado por ter abraçado
um travesti. Soube depois que havia cometido um crime bárbaro (o travesti, não
o médico).
Só por isso já seria motivo
mais do que suficiente para não readquirir um hábito há tanto abandonado. Penso
que seria pior do que voltar a fumar. Pelo som que vem dos apartamentos
vizinhos, devo ser o único a não preencher o tempo com a televisão. Aliás, acho
que ela mais joga fora do que ocupa o tempo.
Não deixo o aparelho de TV
desligado. Assisto filmes, clipes e algumas reportagens estrangeiras que estejam
disponíveis. Gosto da RAI italiana, mas não tenho este canal, o que não faz
diferença porque não entendo nada de italiano. Vejo, vez ou outra, pela
internet. O idioma italiano é chamado de língua dos anjos, por causa da beleza
e da sonoridade. Do jeito que as coisas andam por lá, acho que os anjos têm
muito a fazer.
Uma vez me perguntaram como eu
me informava, já que não assisto telejornais. Respondi que era exatamente por
isso que me considero informado. Com a insistência, falei que me atualizava
pelo Intercept Brasil, pela TV 247, pelo Público, jornal de Portugal, pela
Folha e mais alguns informativos. Senti que, por precaução, afastaram as
crianças de mim. Vai que eu estivesse com fome.
Para não perder a referência,
aconselham que mantenhamos o ritmo de antes da quarentena, o que acho difícil
porque trabalhava dez horas por dia no escritório, para onde me deslocava de
metrô, e almoçava em restaurantes do centro da cidade. Felizmente continuo a
trabalhar e me visto para isso. É claro que não uso terno em casa, nem mesmo
para videoconferências. Iria parecer artificial e pedante. Vivemos tempos de
calamidade pública e há todo um protocolo para o momento. Às vezes é complicado redigir peças
jurídicas com um arfar insistente sob a cadeira. É a cadela que ainda não
passeou, e se depender de mim não vai passear hora nenhuma, mesmo tendo cagado
na foto do presidente. Não adianta me agradar. Não gosto de insistência.
Devo estar chato mesmo. Não me
sinto um prisioneiro, porque posso sair se quiser. A diferença é que não quero.
Olho pela janela e vejo perambulando pessoas de certa idade, melhor seria dizer
de incerta idade, porque alguns não tem mais nem a plaqueta com a data da
inauguração. Não sei o que velho gosta de fazer na rua, mas sei que garantem a
necessidade de sair todos os dias, por isso saem do supermercado com o mínimo
de coisas, para que acabe logo. Na farmácia perguntam pela embalagem que
contenha o menor número de comprimidos. Fazer estoque significa cumprir a
quarentena.
Velho adora dizer que já viveu
demais, mas, quando a coisa aperta, procura o médico e o padre, para não deixar
nenhum dos lados desguarnecidos. Este ano a Semana Santa não teve procissão e
nem missa de Páscoa. Não duvido que alguns tenham pedido ao padre um atestado
para apresentar no além.
Passei uns dias agoniado, com
a internação do primeiro ministro inglês na UTI. Se ele morresse, com o que há
de mais avançado ao seu dispor, ia acreditar que era uma questão de tempo para
seguirmos o mesmo rumo. Não tenho simpatia por nenhum líder loiro de cabelo
arrepiado que fala inglês. Só conheço dois, mas já é o bastante.
Cuidar do espírito estou
conseguindo, mesmo não tendo convicção de que ele exista, mas do físico já é
mais complicado. Comecei a praticar Qigong, uma suave sequência de movimentos criada
na China, mas uma das cadelas, a menos inteligente , cismou que é uma ameaça e me estraçalhou com selvagens
dentadas.
Enfim, vou levando essa
pandemia do jeito que der para levar. Um dia acaba, bem ou mal, mas acaba. Dizem
que a humanidade será muito melhor depois disso tudo. Parece confortador, mas
será que não falaram a mesma coisa para os dinossauros?
Rio de Janeiro/RJ, 14 de abril de 2020 (inscrita no concurso do 247)