terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Esperança


No dia 31 de dezembro de 2020, Bel me chamou para ver um inseto que entrou pela janela de seu escritório. Ela não tem um pingo de medo, mas as cachorras estavam inquietas. Como diziam os antigos, elas estavam com a cachorra. Era assim que se falava de quem estava arrumando confusão. Já ouvi também dizerem que alguém estava com a macaca, quando se tratava de alguém mau-humorado. Por que estas expressões citam somente as fêmeas? Preconceito vem de longe.

Quando fui ver o tal bicho, torci para que não fosse barata. Embora barata todo mundo saiba como é, podia ser um primeiro de abril fora de época. Sei lá, quarentena tem dessas coisas. Felizmente não era barata, era uma Esperança. Para quem não sabe, ou não identifica pelo nome, Esperança é uma espécie de gafanhoto sem a cara assustadora, verde como um palmeirense e em formato de folha. Mimetismo como esse nunca vi. Não sei quem é o predador dele, talvez seja um pássaro, mas vai ser difícil achar aquele alface no meio da árvore. Se verdura emagrece, verdura que se esconde deve ser ainda mais eficiente.

Dentro de casa, porém, ela estava bem vistosa, tanto é que as cachorras se alvoroçaram todas. Tentamos fazer com que ela fosse embora pela janela, mas ela não se mexia. Estava no teto, de cabeça para baixo, como se fosse colada. Acho que as patinhas dela tem sucção, mas não entendi o que ela pretendia ficando ali. Achei um jeito bem sem graça de festejar a passagem de ano, mas cabeça de inseto é diferente de cabeça de gente. Tenho uma amiga que diz que algumas mulheres têm cara de barata, mas é só a cara. A cabeça deve ser de gente mesmo. Enfim, tentamos de tudo, mas a Esperança bateu o pé e não saiu, quer dizer, não bateu o pé porque senão caia do teto.

Um ano tão encrencado como foi 2020 merecia terminar com Esperança, e desta vez foi para valer. Não teríamos esperança apenas no coração, mas no teto também. Deixamos ela para lá e fomos cuidar de coisas mais importantes. Aí descobrimos que não tínhamos nada de tão importante para fazer naquele último dia do ano. Queima de fogos na praia não ia ter, e se tivesse não iríamos. Ceia hoje em dia é tão fácil de preparar quanto fazer um miojo. Pega o tender, tira da embalagem, embrulha no papel alumínio e deixa no forno até sentir cheiro de ceia. Farofa vende pronta e espumante a gente começa a beber bem antes da meia noite. Na hora da virada abrimos outra, se ainda tiver.

A gente se cumprimenta, beija, brinda, fala um monte de bobagem, não faz promessa nenhuma, porque parece que aí mesmo que a gente não cumpre. Ficamos olhando o céu, os fogos de artifício que alguns ainda soltam, escuta a cachorrada ganir, menos as nossas, que são mais barulhentas e talvez por isso não se incomodam. Comemos a ceia, bebemos mais um pouco e depois um pouco mais. Pensamos que é bom ter um fim de semana emendado, para não nos preocuparmos com a ressaca. Dormimos não sei que horas e sem saber como fomos para a cama. Por sorte não dormimos pendurados no teto. A Esperança já havia ocupado o lugar.

No dia seguinte, o primeiro dia do ano, não encontramos a Esperança. Ficamos felizes porque as árvores estavam cheias de folhas e ela poderia se esconder dos pássaros. Ao menos começaria 2021 sem susto.

As cachorras começaram a latir de novo e fomos ver qual a falta de motivo para a barulheira. Elas só latem sem motivo, então temos que descobrir o que não aconteceu para justificar os latidos. Só que desta vez elas tinham razão. No tapete havia uma Esperança morta. Ficamos decepcionados e cismados. Dizem que a Esperança é a última que morre, mas desta vez ela foi antes de todo mundo. De que mundo, afinal?

A esperança de 2021 foi para o lixo, literalmente. Jogamos a Esperança na lixeira e entendemos isso como um sinal.  Quem sabe não é hora de não mais ter Esperança e partir para a luta. Não creio que a morte da Esperança tenha sido em vão.


Rio de Janeiro/RJ, 05 de janeiro de 2021





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