terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Barata

 Tenho muita inveja de quem não tem medo de barata. Não é de quem diz que não tem medo, mas de quem não tem medo mesmo. Há uns anos, a Marília Gabriela entrevistava Fernando Collor de Mello. Não me lembro o que ele era na época, se era candidato a presidente da república, presidente da república ou ex-presidente da república. Não importa, ele mantém a pose sempre. Até quando não era nada, agora é senador, mantinha a mesma empáfia. Por isso, quando a gente vê algum vídeo do Collor, o ideal é que tenha legenda dizendo o que ele é. Melhor do que isso é não ver nada do Collor. Não perdemos nada com isso. Mas, para ilustrar o tema da barata, e não para lustrar a barata, que parece recém-envernizada, tenho que falar delle, com dois eles, como gosta de frisar.

Marilia Gabriela vendo que o cara não baixava a crista, tinha resposta para tudo, aproveitava para se enaltecer, e isso ele faz até quando está por baixo, tirava onda de valente e de destemido, perguntou do que ele tinha medo.  É o tipo de pergunta inócua. É claro que ele respondeu que não tinha medo de nada. Ela insistiu e perguntou se nem de barata ele tinha medo. Ele afirmou que não. Disse que tenho inveja de quem não tem medo de barata, mas aquele cara não me convenceu.

Aliás, não sei o porquê as pessoas escondem que tem medo de alguma coisa, ou de algumas. Não tenho medo de quase nada, talvez até de nada, mas de barata eu tenho. Até finjo que não ligo, se estiver com pessoas de pouca intimidade ou em lugar público, com gente que não conheço. Disfarço, mas não abro a guarda. Pode ser até de noite, mas de longe enxergo aquela coisa se mexendo. Se estiver quietinha, poso até confundir com um pinhão, mas pinhão só dá no inverno, e nessa estação a barata some. Por isso, pinhão e barata nunca vão se cruzar. Então, se estiver no verão, não tem erro. É barata!

Uma vez estava aguardando um amigo para almoçar no extinto Porcão Rio’s. Enquanto bebia uma caipirinha na varanda, na mesa ao lado o apresentador Ratinho dava entrevista a umas jornalistas bastante bonitas. Escutei quando uma delas perguntou do que ele tinha medo. Não entendo que obsessão as entrevistadoras têm por essa pergunta. Vaidoso que só ele, aquela figura um tanto grotesca deu um tapa na mesa e disse que não tinha medo de nada. Por sorte não tinha copos na mesa. Era uma entrevista a seco. De repente, fez cara de quem acabou de se lembrar de alguma coisa e disse que tinha, sim, uma coisa de que tinha medo. De fantasma. Aí, com aquela voz insuportável que não sei como atraia tanta audiência, repetiu algumas vezes que de fantasma ele tem medo. Mas não apenas repetia. Fazia gestos para demonstrar o que era um fantasma. Só faltou desaparecer, o que não seria de todo ruim. Pensei comigo que ele é um fanfarrão, daqueles que quem não conhece compra e paga caro. Dizer que tem medo do que não existe é fácil. Quero ver dizer que tem medo de barata. É preciso ter coragem para ter medo de barata. E isso eu tenho.

Não sei se por causa desse episódio do Ratinho, passei a pensar que não gostaria de me deparar com um fantasma, mas dizem que eles não aparecem para a gente. Então como podemos ter medo dele? Acho que vou perguntar para o Ratinho. Pelo sim pelo não, deixei o fantasma como segundo na lista de medos, caso algum resolvesse me assombrar. E o dia chegou, ou melhor, à noite, que é o horário tanto deles quanto das baratas. Estava sozinho em casa e apareceu uma barata no banheiro. Até aí, fácil. Bastava não tomar banho até a Bel voltar. Ela não tem medo, mas estava fora do país e só voltaria em uma semana.  Até uns três dias dá para disfarçar com perfume. Mais do que isso, só embalsamando.  E tem outra coisa, nem só para banho serve o banheiro. Além disso, ela podia querer conhecer o resto da casa, igual visita de pobre.

Corri contra o tempo, para achar o veneno para baratas, que as pessoas chamam de remédio de barata. Nunca ia ter remédio de barata em casa. Se ficarem doentes não dou uma aspirina. E nem pensar que eu vá fazer uma canja. Por mim, pode morrer que nem no velório eu vou.

Corri para pegar o veneno porque essas danadas têm percepção. Quando a gente sai correndo, elas sabem que não é para trazer comida ou bebida. Por isso, muitas vezes a gente volta e não encontra mais ninguém. Ninguém, no caso, é ela, a barata.

Encontrei o aerossol e ela estava me esperando. Quer dizer, não sei se estava me esperando, mas não saiu do lugar. Cheguei a pensar que já estava morta, talvez de susto. Quem sabe ela tinha medo de gente? Mas nada que é bom dura para sempre. Quando já estava pensando em como ia me livrar dela, vi as anteninhas se mexendo. Era fingimento da diaba. Foi traída pela antena. Igual em filme, quando a pessoa está escondida e toca o celular. Quem está assistindo fica mais assustado do que o dono do aparelho. Antena deve ser o celular de barata, e o dela não estava no modo silencioso.

Mirei o jato na cara dela. Mentira, mirei na direção dela porque não teria coragem de encarar uma barata. Ela é terrivelmente feia. Se não encaro gente feia, o que dirá encarar uma barata feia. Ela ficou encharcada de inseticida, com uma espuma branca cobrindo o corpo. Parecia que tinha saído da Jacuzzi e esquecera o roupão no quarto.  Falei da Jacuzzi só para parecer bacana, mas não tenho Jacuzzi. Era box mesmo.

Depois daquela coreografia que barata faz quando vai morrer. Deita-se de costas, mexe as perninhas, nem sei quantas, mas parece que são umas dez. Abre e fecha as asas. Parece que está fazendo checklist em avião. Maneja os flaps, o leme, enfim, tudo que não pode dar problema no voo. Aliás, se tem uma coisa pior do que  barata é  barata voadora, mas a minha (olha a intimidade) era terrestre mesmo. Vendo que em breve já não estaria mais em nosso mundo, tratei de buscar pá e vassoura para o funeral. Quando volto, vi que meu maior medo havia sumido, dando lugar ao segundo maior medo. O fantasma.

Não pode ser. Em uma mesma noite, encarar uma barata e um fantasma de barata. Se viva não dou conta de enfrentar, imagine, então, desencarnada. Não fazia a menor noção de onde podia estar escondida. Chamar um padre para exorcizar? Não viria. Ligar a TV na Record e pedir ao pastor de plantão que tirasse aquele encosto? Acho que só indo no culto. Sem dinheiro eles não têm boa vontade. Ou melhor, não tem nem vontade.

Nunca me imaginei pedindo para encontrar uma barata, mas, naquela noite, tudo o que eu queria é que ela voltasse, nem que fosse para morrer de novo, só que agora eu não sairia de perto. Ia ficar igual serial killer, que fica perto da vítima esperando para ser preso e ganhar notoriedade.

Ela não voltou e eu não dormi. Passei a noite assistindo filme, de luz acesa e olhando ao redor. Nem me lembro o que assisti. Tanto podia ter sido A Paixão de Cristo quanto O Jumento Gozador. Não prestei atenção mesmo.

A manhã trouxe o sol e as olheiras. Me arrependi de pedir à faxineira que não viesse enquanto estivesse sozinho em casa. Quis aproveitar um pouco de privacidade e agora não sossego enquanto não achar aquela praga. Deixei uma lanterna acesa no escuro para ela achar que é a tal luz que os mortos devem seguir, quando ainda não se deram conta de que o jogo acabou.

Relaxo. Vou para a rua, me sento em um café bastante charmoso, onde todos me conhecem. Faço meu pedido, despejo o cansaço de uma noite assombrada na poltrona que me abraça. Abusado, boto os pés na mesa de centro e levo um susto enorme quando a atendente grita que há uma barata esmagada na sola do meu tênis.


Rio de Janeiro/RJ, 12 de janeiro de 2021 




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