quarta-feira, 11 de julho de 2018

Carnaval


Tenho um relógio biológico diferente. As pessoas reclamam de desconfortos próprios da idade, dor nas costas, nas pernas, tonteira e mal estar. Estou acordado, em plena terça-feira de Carnaval, desde muito cedo, sem sentir absolutamente nada.

Não me iludo, porém, de que este não seja um sintoma do avanço inabalável do tempo. Se não sinto nada, é porque nada fiz na véspera, e, se nada fiz, é porque não tenho mais tanto ânimo para Carnaval, embora seja uma das datas que mais gosto.

Quem, no derradeiro dia da comemoração de Momo, poderia estar assim tão inteiro, se tivesse sucumbido às inúmeras, e imperdíveis, tentações que se apresentam em cada esquina, em cada decote suado, em cada sorriso franco, nas bochechas brilhantes e nos corpos que serpenteiam, buscando acompanhar ritmos e letras inaudíveis, do distorcido equipamento de som dos blocos de rua?

Não seria possível lembrar de tudo o que aconteceu na véspera, se a noite tivesse se apresentado com todas suas armas, se me deixasse capturar por índias de tribos desconhecidas, fadinhas com encantos não revelados, abelhas mais doces do que o próprio mel e falsas negras malucas, que o calor já transformou em mulatas e, em pouco tempo, devolve-lhes a brancura. Por sorte, existem muitas que não são nem malucas e nem perdem a cor.

Carnaval é Carnaval. Se não for para entrar na folia, também não é para se fazer de folião com o rosto grudado na tela da TV. Isso não é alegria. Está mais para depressão do que para animação. A gente só se diverte quando está feliz por inteiro. Não é identificando globais ou famosos efêmeros de um reality show que faremos parte da festa.

Não olho com saudade carnavais passados e nem procuro advinhar carnavais futuros, mas esse eu quis passar assim, lendo, escrevendo, namorando e pensando que a vida oferece muita coisa que não precisa de data certa para acontecer.  Nem tudo é tão santo. Também comi e bebi, se não de forma exagerada, bem mais do que a nutricionista me recomenda.

Dos meus ritos de passagem, se é que existe mais de um, o Carnaval foi marcante, talvez por inusitado que tenha sido. Ao atingir a idade permitida para os bailes noturnos, que hoje são raros, peguei uma hepatite cavalar, por conta de uma torneio bobo, inventado por mim, de permanência em um bueiro. Com vela, gibis e cigarros, permaneci convivendo com ratos e baratas por mais de duas horas, ganhando de prêmio dois meses de repouso absoluto, em plenas férias de verão e no que seria meu primeiro Carnaval pra valer.

Forçosamente, ouvia uma ou outra coisa pela televisão, já que meu pai, se não era surdo, se passava por tal. Não havia um canto onde não ecoassem propagandas de cigarro, de bebidas, de fanfarronices do governo militar e, naqueles dias, muito de carnaval.,

Nada porém que o tempo não resolva. No ano seguinte, contava nos dedos os dias para a chegada do carnaval. Já me imaginava reinando no salão, com um copo em uma das mãos e um cigarro na outra. Seria influência da televisão?  Creio que não. Se fosse assim, estaria também fardado e dizendo “Brasil, ame-o ou deixe-o”.  Fumar e beber eram parte do rito de passagem.

Chegou o Carnaval, mas parece que não para mim. Minha família cismou de viajar justamente no que seria meu primeiro carnaval. Não podia crer naquilo. Era um complô, uma brincadeira de mau gosto, ou seria verdade mesmo? Era verdade.

Se fosse para uma cidade de praia, com tradição em carnaval, ainda assim iria emburrado. De que adianta passar carnaval onde não conhecesse ninguém? Ia me sentir como um menino de rua no fliperama, vendo os outros se divertindo e sem poder encostar a mão nas máquinas.

Mas era pior. Iríamos para o interior, em uma cidade pequena e enfiada no meio do mato. Na infância era meu sonho de consumo, mas não agora. Minas para mim já fazia parte do passado afetivo.  Uma ou outra ida rápida, vá lá, e desde que não fosse no carnaval. Mas naquele ano parece que os astros tramavam uma estranha conjugação. E contra mim.

Chegamos um ou dois dias antes, sei lá, e  meu pai, provavelmente querendo se redimir, arrumou um jeito de me empurrar para os bailes de carnaval do único clube da cidade. Aquilo não era bem um clube, mas uma associação comercial. Um prédio bem feio, em formato de caixote e que as pessoas chamavam de panela de pressão. Mais tarde vim a saber o porquê.

Não sei se por causa da hepatite do ano anterior, mas a mesma letargia que fez com que não reagisse à viagem, me deixou ser levado, não me lembro por quem, ao carnaval que, diziam, seria inesquecível. E foi.

Um lugar lotado até o teto, quente e com música altíssima. Ali entendi a panela de pressão. Com a curiosidade natural dos mineiros, respondi algumas dezenas de vezes quem era e de quem era parente. Aos poucos fui me  sentindo em casa e, mais relaxado, acho que estava até me sentindo feliz. Talvez pela inesperada e injustificada popularidade.

O que posso dizer daquele carnaval? Foram noites mágicas, de mulheres lindas, com sotaque cativante, beijos inesquecíveis de hortelã e laços que nunca mais se desfariam. Por muitos anos nunca mais concebi carnaval que não fosse lá.

A quarta feira de cinzas trouxe bem mais do que a quaresma. Trouxe a identificação com a espontaneidade de uma alegria sincera, para mim bem mais autêntica do que os próprios desfiles de escolas de samba que conhecia pela televisão.

Em Minas o carnaval não era para os outros, mas para quem estava ali, participando e feliz. Feliz porque participava, e não para mostrar que estava feliz.

As fantasias eram criadas com espontaneidade e praticidade. Minha tia tem loja de tecidos e, à noite, me espantava com odaliscas e colombinas vestidas com cortes vendidos naquele mesmo dia.

Sei que esperar pela festa é melhor do que a festa, mas não no exagero que vejo na minha filha, para não buscar exemplo mais longe. Se recebe um convite para uma formatura, daqui a dois meses, é tomada por uma ansiedade inexplicável, em busca de uma roupa e de enfeites que talvez nem sejam assim tão notados. Ela já é bonita o suficiente para não precisar de tanto.

Em Passa Quatro, a fantasia é feita no mesmo dia. Talvez algo mais elaborado seja na véspera. Para mim, uma camiseta e uma faixa na cabeça foram o suficiente para não fazer feio.

Aquele carnaval nunca mais me deixou. Fiquei com a música “pega no ganzê pega no ganzá” por muito tempo nos ouvidos, mas não foi isso que me marcou. Encontrei raízes distante de onde vivia, e se hoje não vivo de saudades é porque trago para o presente pedaços do que vivi naqueles tempos, e que para sempre viverão em mim.

Mas não acabou. Hoje ainda é Carnaval, e nos próximos anos tem mais. Se fosse um carnavalesco, não contaria o que penso para o próximo desfile da minha escola de samba.  Então não vou dizer qual será meu próximo enredo.

A vida, como o Carnaval, brilha mais quando surpreende.

* Escrito no carnaval de 2018, com lembrança viva do meu primeiro carnaval.


Rio, fevereiro de 2018