sábado, 19 de dezembro de 2020

Souvenir

Li um artigo da escritora argentina Mori Ponsowy sobre a visita feita ao filho que estudava no Japão. Me chamou à atenção quando ela descreveu que viu algo muito bonito, não me lembro o que era, e só não comprou porque há algum tempo decidira que não mais compraria coisas que não precisasse, ou seja, que não fossem essenciais.

Sempre me lembro da Mori, quando viajo e vejo algum souvenir que me parece irresistível. Se além de interessante, for barato e não ocupar espaço na mochila, aí mesmo é que fico com muita vontade de comprar. Dizem que vontade é coisa que dá e passa, mas comigo não funciona. Já até ponderei que com o tempo aquilo vai estragar, ficar empoeirado e, por pena de jogar fora, vou manter aquela feiura à vista de todos, porque geralmente a gente bota esses badulaques na estante.

Decidido, viro as costas e saio orgulhoso de minha determinação, que, no entanto, só dura até eu constatar que aquilo não tem em nenhum outro lugar. Aí começo a pensar que não sou determinado, mas cabeçudo e inflexível. Afinal, o que custa levar uma lembrancinha para manter a viagem viva por mais tempo. Só de chamar de lembrancinha dá para perceber que estou me enganando. Usar o diminutivo é uma forma de aliviar a consciência. Tomar um chopinho, beber uma tacinha de vinho é sinônimo de encher a cara.  Chamar de bonitinha a namorada de um amigo é artifício para não perder a amizade, porque se fosse bonita mesmo não precisava falar assim.

Assumindo o arrependimento, penso em voltar à loja onde vi o souvenir, que é o nome que se dá ao que não tem utilidade, mas viagem é coisa cara e não dá para perder tempo indo e voltando. O negócio é torcer para encontrar em outro lugar. Aí já não presto atenção em mais nada, a não ser nas vitrines das lojas para turistas, correndo o risco de achar ainda mais bobagens para levar. Por sorte, a China produz mais do que a humanidade precisa e logo aquilo que desprezei há algumas quadras está novamente diante de mim. Em um misto de remorso e vontade de jogar dinheiro fora pago, quase sempre, bem mais do que o preço que vi lá atrás. Tenho a impressão que sempre caminho na direção dos lugares mais caros. Da próxima vez vou experimentar inverter o trajeto para ver se economizo.

Ao arrumar a bagagem para voltar, o que sempre deixo para última hora, cuido para que nada fique para trás. Digo nada porque me assusto com a quantidade de bobagens que comprei. Somando com os flyers, tíquetes de metrô, ingressos de museus, guardanapos de restaurantes (não usados) e mapas, chego perto de pagar excesso de bagagem, mas venho feliz.

Já de volta, a rotina me espera com a mesma fúria da mulher do boêmio. Sem me dar tempo para respirar, retorno ligações, abro correspondências que se acumularam e as divido entre inúteis e cobranças. Espero um dia receber alguma que traga boas notícias. Não precisa nem ser uma herança, porque aí teria que vir atrelada a uma morte, mas pode ser o prêmio de uma rifa, por exemplo. Um querido amigo todos os anos promove a rifa de um fusca para ajudar a igreja que frequenta, em Lençóis Paulistas. Para diminuir a frustração de quem não ganha, há prêmios secundários. Ainda não levei o carro, mas tenho jogos de toalhas suficientes para enxugar um elefante.

Aos poucos ajeito as recordações em prateleiras, escrivaninhas, mesas de cabeceira e onde mais conseguir lugar. Há uma certa ordem, não necessariamente pela origem, mas pelo tipo. Torres e castelos convivem com casinhas e casebres. Esculturas que busquem se entender, ainda que o Manequinho de Bruxelas ameace fazer xixi na Estátua da Liberdade, sob o olhar de sonso do pelado Davi de Michelangelo. Às vezes erro na escala e um gato pescador da Colômbia parece que vai engolir uma lhama do Chile.  Li em um desses artigos que tratam de organização que o ideal é criar um espaço para as lembranças de viagens, ao invés de os manter espalhados pela casa. A ideia é que se juntarmos tudo o que é cafona em um mesmo lugar, aquilo deixa de ser cafona e passa a ser outra coisa, que não me lembro o nome que deram, acho que foi kitsch. Não sei se existe coletivo de cafonas. Até foguete tem substantivo coletivo, girândola, mas papa e cafona não tem. De papa até tinha justificativa, porque só existia um, mas agora nem isso.

Com o tempo começo a ter vergonha dos enfeites de viagens, principalmente quando eles são comentados. Há tempos, um amigo que sempre nos visitava dizia para todo mundo que minha casa era um lugar muito pitoresco. Ele falava que tínhamos um monte de coisinhas em todos os cantos e que era uma coisa muito linda. A última vez que esteve aqui em casa, minha cunhada bebeu demais e tascou um beijo nele, achando que era o marido. De tão sem graça ele desapareceu. Ela não, porque estava hospedada aqui e não tinha para onde ir. Talvez depois disso ele ache aqui ainda mais pitoresco.

Para manter o equilíbrio do ecossistema, existem os predadores. Em casa não poderia ser diferente, senão estaríamos mergulhados em um mar de quinquilharias. Aquelas lembrancinhas de viagens tomariam nosso lugar na terra se não fossem seus exterminadores naturais. Na ordem crescente de destruição estão os animais domésticos, as crianças e a faxineira.

Tive uma oncinha de madeira por anos aqui em casa. Não muito grande, ficava no chão do corredor de entrada. Bastante discreta, na cor natural, resistente ao tempo e a uma ou outra pisada, parecia disposta a seguir pela eternidade, até que resolvemos adotar Rihana, uma cadela sem lenço e sem documento. O vira-latas tem uma maneira diferente de demonstrar gratidão. Em troca de casa, comida e carinho, suja a casa inteira e destrói aquilo que lhe parece inútil, como as recordações de viagens. Com uma semana em sua nova casa, ou melhor, em sua primeira casa, já que antes morava na rua, resolveu que a oncinha ficaria melhor sem as orelhas e a cauda. Hoje, temos uma pequena escultura de arte abstrata onde antes havia um felino.

As crianças são mais seletivas, e conhecendo-as é fácil perceber suas intenções. Guardava uma miniatura do carro do 007 com cuidado relativo. Ao contrário do protótipo usado nos filmes, esta miniatura não corria o risco de encontrar os capangas de Goldfinger ou do Dr. No. Ficava segura, longe do alcance de um filhote de cachorro, mas acessível a um filhote de gente. E foi assim que meu neto decidiu que o carro não deveria mais ter pneus. Bastou nascerem seus primeiros dentes para afiá-los na borracha das rodas. Ao contrário da oncinha, o carro foi para  lixo. Sucata não tem glamour nenhum.

Mas nada se compara ao requinte da faxineira, a começar pela capacidade de dissimulação. Enquanto crianças e cachorros destroem abertamente, a faxineira, quando não consegue disfarçar o dano, esconde o próprio objeto. Jogar fora, não joga, pois, na hora do aperto, é preferível apresentar o estrago do que passar a impressão de que tenha feito algo mais grave.

Certa vez cismei de colecionar miniaturas de aviões da segunda guerra, mesmo não tendo ímpeto belicista. Era uma coisa linda de se ver. Junkers, Thunderbolts, Mustangs e Spitfires conviviam em estante tão alta que se julgavam a salvo de qualquer bateria anti-aérea. Não contavam, porém, com o poder destrutivo de um espanador em mãos pouco cuidadosas. Embora imperceptível, notei que faltava hélices em quase todos.  Quando perguntei o que havia acontecido, a simpática criatura, como o são quase todas as faxineiras, abriu um sorriso e disse que caíram quando passou o espanador. Perguntei, então, onde estavam e ela me respondeu que varreu e jogou fora, pois estavam no chão. Diante dessa lógica de considerar que tudo que está no chão é lixo, passei a ter o estranho hábito de dormir com os chinelos debaixo do travesseiro e hoje desconfio porque passei tanto tempo comprando novos pares.

Se há algum prazer em colecionar miniaturas, creio que é somente pelo gosto de ter ao alcance das mãos algo que não conseguiria em tamanho natural. Já me disseram, ou li não sei aonde, que pode ser o desejo oculto de dominação. Não acredito nisso, se assim fosse, as meninas seriam dominadoras infernais, depois de passar anos brincando com bonecas.

Pensei em buscar a resposta na terapia. Afinal, para que serve a terapia, se não for para esclarecer? O problema é que raramente me lembro de falar na sessão aquilo que pretendo. Passei a escrever os assuntos no bloco de notas do celular. Enquanto tentava, aflito, encontrar o tema que seria tratado, observei que a terapeuta, enquanto pacientemente me aguardava, organizava com meticulosidade impressionante a coleção de corujinhas de vidro. Desisti e passei a falar da minha mãe, que não acredita em terapia e me trouxe ao mundo no dia do seu aniversário. Mãe é assunto que terapeuta conhece bem. 

 

Rio, junho de 2020

Terceiro lugar etapa estadual TALENTOS FENAE 2020