Li um artigo da escritora argentina Mori Ponsowy sobre a visita feita ao filho que estudava no Japão. Me chamou à atenção quando ela descreveu que viu algo muito bonito, não me lembro o que era, e só não comprou porque há algum tempo decidira que não mais compraria coisas que não precisasse, ou seja, que não fossem essenciais.
Sempre
me lembro da Mori, quando viajo e vejo algum souvenir que me parece
irresistível. Se além de interessante, for barato e não ocupar espaço na
mochila, aí mesmo é que fico com muita vontade de comprar. Dizem que vontade é
coisa que dá e passa, mas comigo não funciona. Já até ponderei que com o tempo
aquilo vai estragar, ficar empoeirado e, por pena de jogar fora, vou manter
aquela feiura à vista de todos, porque geralmente a gente bota esses badulaques
na estante.
Decidido,
viro as costas e saio orgulhoso de minha determinação, que, no entanto, só dura
até eu constatar que aquilo não tem em nenhum outro lugar. Aí começo a pensar
que não sou determinado, mas cabeçudo e inflexível. Afinal, o que custa levar
uma lembrancinha para manter a viagem viva por mais tempo. Só de chamar de
lembrancinha dá para perceber que estou me enganando. Usar o diminutivo é uma
forma de aliviar a consciência. Tomar um chopinho, beber uma tacinha de vinho é
sinônimo de encher a cara. Chamar de
bonitinha a namorada de um amigo é artifício para não perder a amizade, porque
se fosse bonita mesmo não precisava falar assim.
Assumindo
o arrependimento, penso em voltar à loja onde vi o souvenir, que é o nome que
se dá ao que não tem utilidade, mas viagem é coisa cara e não dá para perder
tempo indo e voltando. O negócio é torcer para encontrar em outro lugar. Aí já
não presto atenção em mais nada, a não ser nas vitrines das lojas para
turistas, correndo o risco de achar ainda mais bobagens para levar. Por sorte,
a China produz mais do que a humanidade precisa e logo aquilo que desprezei há
algumas quadras está novamente diante de mim. Em um misto de remorso e vontade
de jogar dinheiro fora pago, quase sempre, bem mais do que o preço que vi lá
atrás. Tenho a impressão que sempre caminho na direção dos lugares mais caros. Da
próxima vez vou experimentar inverter o trajeto para ver se economizo.
Ao
arrumar a bagagem para voltar, o que sempre deixo para última hora, cuido para
que nada fique para trás. Digo nada porque me assusto com a quantidade de
bobagens que comprei. Somando com os flyers, tíquetes de metrô, ingressos de
museus, guardanapos de restaurantes (não usados) e mapas, chego perto de pagar
excesso de bagagem, mas venho feliz.
Já de
volta, a rotina me espera com a mesma fúria da mulher do boêmio. Sem me dar
tempo para respirar, retorno ligações, abro correspondências que se acumularam
e as divido entre inúteis e cobranças. Espero um dia receber alguma que traga
boas notícias. Não precisa nem ser uma herança, porque aí teria que vir
atrelada a uma morte, mas pode ser o prêmio de uma rifa, por exemplo. Um
querido amigo todos os anos promove a rifa de um fusca para ajudar a igreja que
frequenta, em Lençóis Paulistas. Para diminuir a frustração de quem não ganha,
há prêmios secundários. Ainda não levei o carro, mas tenho jogos de toalhas
suficientes para enxugar um elefante.
Aos
poucos ajeito as recordações em prateleiras, escrivaninhas, mesas de cabeceira
e onde mais conseguir lugar. Há uma certa ordem, não necessariamente pela origem,
mas pelo tipo. Torres e castelos convivem com casinhas e casebres. Esculturas
que busquem se entender, ainda que o Manequinho de Bruxelas ameace fazer xixi
na Estátua da Liberdade, sob o olhar de sonso do pelado Davi de Michelangelo.
Às vezes erro na escala e um gato pescador da Colômbia parece que vai engolir
uma lhama do Chile. Li em um desses
artigos que tratam de organização que o ideal é criar um espaço para as
lembranças de viagens, ao invés de os manter espalhados pela casa. A ideia é
que se juntarmos tudo o que é cafona em um mesmo lugar, aquilo deixa de ser
cafona e passa a ser outra coisa, que não me lembro o nome que deram, acho que
foi kitsch. Não sei se existe coletivo de cafonas. Até foguete tem substantivo
coletivo, girândola, mas papa e cafona não tem. De papa até tinha justificativa,
porque só existia um, mas agora nem isso.
Com o
tempo começo a ter vergonha dos enfeites de viagens, principalmente quando eles
são comentados. Há tempos, um amigo que sempre nos visitava dizia para todo
mundo que minha casa era um lugar muito pitoresco. Ele falava que tínhamos um
monte de coisinhas em todos os cantos e que era uma coisa muito linda. A última
vez que esteve aqui em casa, minha cunhada bebeu demais e tascou um beijo nele,
achando que era o marido. De tão sem graça ele desapareceu. Ela não, porque
estava hospedada aqui e não tinha para onde ir. Talvez depois disso ele ache
aqui ainda mais pitoresco.
Para
manter o equilíbrio do ecossistema, existem os predadores. Em casa não poderia
ser diferente, senão estaríamos mergulhados em um mar de quinquilharias.
Aquelas lembrancinhas de viagens tomariam nosso lugar na terra se não fossem
seus exterminadores naturais. Na ordem crescente de destruição estão os animais
domésticos, as crianças e a faxineira.
Tive
uma oncinha de madeira por anos aqui em casa. Não muito grande, ficava no chão
do corredor de entrada. Bastante discreta, na cor natural, resistente ao tempo
e a uma ou outra pisada, parecia disposta a seguir pela eternidade, até que
resolvemos adotar Rihana, uma cadela sem lenço e sem documento. O vira-latas
tem uma maneira diferente de demonstrar gratidão. Em troca de casa, comida e
carinho, suja a casa inteira e destrói aquilo que lhe parece inútil, como as
recordações de viagens. Com uma semana em sua nova casa, ou melhor, em sua
primeira casa, já que antes morava na rua, resolveu que a oncinha ficaria
melhor sem as orelhas e a cauda. Hoje, temos uma pequena escultura de arte
abstrata onde antes havia um felino.
As
crianças são mais seletivas, e conhecendo-as é fácil perceber suas intenções.
Guardava uma miniatura do carro do 007 com cuidado relativo. Ao contrário do
protótipo usado nos filmes, esta miniatura não corria o risco de encontrar os
capangas de Goldfinger ou do Dr. No. Ficava segura, longe do alcance de um
filhote de cachorro, mas acessível a um filhote de gente. E foi assim que meu
neto decidiu que o carro não deveria mais ter pneus. Bastou nascerem seus
primeiros dentes para afiá-los na borracha das rodas. Ao contrário da oncinha, o
carro foi para lixo. Sucata não tem
glamour nenhum.
Mas
nada se compara ao requinte da faxineira, a começar pela capacidade de
dissimulação. Enquanto crianças e cachorros destroem abertamente, a faxineira,
quando não consegue disfarçar o dano, esconde o próprio objeto. Jogar fora, não
joga, pois, na hora do aperto, é preferível apresentar o estrago do que passar
a impressão de que tenha feito algo mais grave.
Certa
vez cismei de colecionar miniaturas de aviões da segunda guerra, mesmo não
tendo ímpeto belicista. Era uma coisa linda de se ver. Junkers, Thunderbolts,
Mustangs e Spitfires conviviam em estante tão alta que se julgavam a salvo de
qualquer bateria anti-aérea. Não contavam, porém, com o poder destrutivo de um
espanador em mãos pouco cuidadosas. Embora imperceptível, notei que faltava
hélices em quase todos. Quando perguntei
o que havia acontecido, a simpática criatura, como o são quase todas as
faxineiras, abriu um sorriso e disse que caíram quando passou o espanador.
Perguntei, então, onde estavam e ela me respondeu que varreu e jogou fora, pois
estavam no chão. Diante dessa lógica de considerar que tudo que está no chão é
lixo, passei a ter o estranho hábito de dormir com os chinelos debaixo do
travesseiro e hoje desconfio porque passei tanto tempo comprando novos pares.
Se há
algum prazer em colecionar miniaturas, creio que é somente pelo gosto de ter ao
alcance das mãos algo que não conseguiria em tamanho natural. Já me disseram,
ou li não sei aonde, que pode ser o desejo oculto de dominação. Não acredito
nisso, se assim fosse, as meninas seriam dominadoras infernais, depois de
passar anos brincando com bonecas.
Pensei
em buscar a resposta na terapia. Afinal, para que serve a terapia, se não for
para esclarecer? O problema é que raramente me lembro de falar na sessão aquilo
que pretendo. Passei a escrever os assuntos no bloco de notas do celular.
Enquanto tentava, aflito, encontrar o tema que seria tratado, observei que a
terapeuta, enquanto pacientemente me aguardava, organizava com meticulosidade
impressionante a coleção de corujinhas de vidro. Desisti e passei a falar da
minha mãe, que não acredita em terapia e me trouxe ao mundo no dia do seu
aniversário. Mãe é assunto que terapeuta conhece bem.
Rio, junho de 2020
Terceiro lugar etapa estadual TALENTOS FENAE 2020
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