quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Passeio

Não sei quem inventou que cachorro tem que passear. Pior, inventaram e contaram para eles. Chego do treino, que também é uma invenção danada, doido para encostar o esqueleto na poltrona, e as cadelas começam a olhar com cara de quem está esperando algo. É claro que sei o que elas querem, mas me faço de bobo. Não adianta. Cachorro só é idiota quando lhe convém. Manda parar de latir para ver se obedece. Pede para não rasgar papel e espalhar os pedaços na sala. Parece que entendem o oposto. Não fazem nada que pedimos, mandamos, imploramos. Chego a pensar que não tem cérebro. Quando criança, na escola, duvidava da história de que animais são irracionais e que o homem é o único ser pensante. Depois passei a concordar, mas, hoje, já tenho minhas dúvidas.

Duas cadelas que passeiam pela manhã, por quase duas horas. Contratamos um passeador, ou melhor, tutor, que é o nome que hoje se dá à profissão. Voltam os três com a língua de fora. Ele se recupera logo e vai para casa. Elas ficam arfando e babando no chão. A assoalho está uma feiura só. Manchado de uma maneira que só raspando e passando cera de carnaúba. Melhor nem passar nada. No dia segunte tem mais passeio.


À noite somos nós que levamos. Saem de casa latindo  como se estivessem apanhando, o que não deixa de ser uma ideia tentadora. Chegam à rua nos arrastando. Não sei como não morrem enforcadas. Se descobrir o truque, vendo para os iranianos condenados à morte. Lá eles são pendurados pelo pescoço em uma grua até morrer. Demora, mas acabam morrendo,  de uma maneira horrível. Tão horrível quanto a lei daquele pessoal.


O passeio, na verdade, 


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Glória

De pé há mais de vinte minutos, me ajeito perto da porta do vagão para saltar em breve. O metrô está cheio e as paradas anteriores só serviram para trocar o número de pessoas que desembarcaram pelas que embarcaram. A penúltima estação antes do meu destino é anunciada. Como em todas as manhãs me impaciento e penso se não deveria ser suprimida esta inútil escala. Afinal, é comum que ali que ninguém entre ou saia do trem, exceto raríssimas exceções. Desconfio que a vida está se extinguindo na Glória.


Lambido pelo mar, agora empurrado para longe pelo aterro, o bairro já não guarda mais do que senão poucas lembranças de um passado de glória, talvez inspirado pela padroeira que lhe emprestou o nome. Do alto do outeiro, a santa contempla, desolada, a transformação do lugar em um amontoado de prédios tristes, despojados de seus momentos de 


terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Escrita

Comecei a fazer o curso de escrita de Henry Bugalho. Além de já ter lido parte de sua obra, assisto seus videos diariamente e sou membro de seu canal no YouTube. A gota dágua que faltava foi o curso ser oferecido pelo Instituto Conhecimento Liberta, de Eduardo Moreira e Jessé de Souza. Paguei a anuidade e tenho direito a qualquer curso ali disponibilizado, sem qualquer custo adicional. Vai de Mandarim a Marketing Digital, passando por Filosofia, Grego e tudo que a gente possa imaginar.


Não assisti a primeira aula porque me inscrevi depois, mas o video fica disponível e imediatamente assisti. De agora em diante vou assistir em tempo real, às quartas feiras, onze foras da manhã. No começo, estranhei porque estou acostumado com os videos diários e já fiquei esperando as espetadas nos negacionistas e outras aberrações da espécie humana. Não teve nada disso. Ali era para aprender a escrever. Embora eu escreva todos os dias, não significa que saiba escrever. Tem gente que joga bola todo dia e continua perna de pau. Para estes resta desistir ou jogar no Barra Mansa FC. 


A qualidade do escritor, dizem, é medida pelos seus leitores. Henry diz que escrever não nos torna escritores. Para isso é preciso mais um pouco. É necessário publicar e atrair leitores. Qualquer que seja o critério, o primeiro passo é escrever, claro. Só que para dar o primeiro passo, antes precisamos dominar as letras. Para dominar as letras, precisamos conhecê-las, e ler é única maneira. Só depois de muito ler a gente se credencia a escrever. Gostei muito quando ele disse que começamos a escrever quando a leitura transborda. É por aí mesmo. Quando leio, me encanto não apenas com o que está escrito, mas também com a forma como está escrito. Quando for escrever, é natural que venha um pouquinho dos estilos que mais gostei. Não é pecado fazer isso. Todos os escritores um dia se inspiraram em outro escritor, ou em outros, o que é mais provável.


Tudo isso, porém, são teses não absolutas. O primeiro livro escrito no mundo foi Dom Quixote, de Cervantes. E foi escrito na cadeia. De quem ele pegaria inspiração? Não é o livro mais lido no mundo. Perde para a bíblia, que duvido muito que seja lida por todos que a adquirem. Vejo bíblias enfeitando salas, mesas de trabalho, mesas de cabeceira e até painel de táxi, mas não sei se foram lidas. Geralmente estão amareladas e amassadas, mas penso que apenas foram manuseadas, como um amuleto. Conheci uma boa mulher, que tinha uma bíblia da Enciclopédia Barsa em lugar de destaque na sala de sua casa. Perguntei se havia lido e ela me respondeu que não porque ouviu dizer que quem lê a bíblia fica doido. Concordo em parte. Para mim quem lê aquele monte de histórias sem pé nem cabeça já é doido. Quem lê e tenta convencer ou outros a seguir o que está escrito ali, é doido contagioso, tipo coronavírus, só que sem vacina.


Estudei em um colégio Batista, não pela vocação religiosa, mas porque precisava passar de ano e o colégio católico não queria mais saber de mim, ainda bem, porque não aguentava mais receber ordens de homens de vestido. No colégio evangélico, fui tratado sem qualquer reserva. Sabiam que eu não era crente, mas tive que assinar um documento declarando que não tinha o hábito de fumar, e realmente não tinha o hábito. Tinha o vício de fumar, o que é muito diferente.

Todos os dias, tínhamos que frequentar uma assembléia, de pouco menos de meia hora, onde eram cantados hinos de louvor e lido um trecho da bíblia. Acho que essa história de dizer que a bíblia é o livro mais lido põe na conta os que ouvem quem lê, mesmo que não esteja prestando atenção. É mais ou menos como os mil gols do Romário, que contou até os que fez nas peladas de rua. Acho que é até pior. Deve ser como os mil gols do Tulio Maravilha, que contou também os replays passados na televisão.


Há uma pesquisa que diz que o segundo livro mais lido do mundo é o Livro Vermelho do Mao Tse Tung. Aquilo foi editado pelo governo e distribuido um para cada chinês. A conta foi feita assim, mesmo não considerando que a maior parte era de analfabetos. Mas na China falou está falado. Quem vai discordar? Ninguém entende o que eles falam.


Bem, vou continuar escrevendo. Qualquer dia disparo os textos para todas as redes sociais e conto como se fossem lidos. Deu certo com fake-news, mas texto para leitor de fake-news tem que ser curto e, de preferência, desenhado. Ainda não tenho esse talento. Acho que nem quero ter.



Rio de Janeiro/RJ, 26 de janeiro de 2021


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Faustão

Hoje, leio nos jornais que o apresentador Fausto Silva deixará a Globo no fim de 2021. Segundo a emissora, a iniciativa foi do ex-gordo e atual sem-graça. Conheci Fausto Silva quando ainda não era Faustão, tinha um programa noturno, no meio da semana, na TV Gazeta, inicialmente, e em seguida na Record, quando ainda não era o braço televisivo da Igreja Universal do Reino do Capeta. 


Era um programa verdadeiramente espontâneo, talvez até por necessidade. A falta de patrocinadores robustos não permitia grandes gastos e a ausência de cenário deslumbrante, bailarinas e elenco de peso era compensada pela capacidade de improviso de Fausto, este, sim, de peso. O nome Perdidos na Noite tinha tudo a ver. Não que eles estivessem perdidos naquela hora, mas os telespectadores, que só devem ter parado ali ao acaso. Uma das piadas de maior sucesso era quando ele dizia que na Globo ia começar um filmaço, para que quem quisesse assistir não perdesse o início. Desnecessário dizer que ninguém mudava de canal. O humor inusitado prendia o público, menor que o da Globo, mas, certamente, mais antenado (naquela época as televisões tinham antenas). 


O auditório era composto de gente como a gente, que não está ali para ver artistas globais. Alguém deve ter começado a mostrar cartazes e logo a brincadeira pegou. A câmera focava os mais engraçados, mesmo que fosse de humor politicamente incorreto. Por falar em político, em 1985 o presidente eleito indiretamente ainda não havia tomado posse por conta de uma série de infecções abdominais que o levariam a morte, depois de trapalhadas de médicos vaidosos e midiáticos. Este assunto deixava o Brasil tenso. O drama, que por si só já era forte, ganhava corpo com as transmissões do Antônio Britto, porta voz do primeiro governo civil depois de duas décadas verdes, diretamente do Hospital das Clínicas. Em uma noite, Paulinho da Viola foi ao Perdidos da Noite e, quando viu um dos cartazes, pegou um pedaço de papel e uma caneta para escrever os dizeres irreverentes: “Este programa está pior do que o intestino do Tancredo”.  Assim era o clima do Perdidos na Noite.


Depois de duas emissoras pequenas, o Perdidos ganhou notoriedade e foi para a Bandeirantes, onde começou a se pasteurizar. O cenário, que era legitimamente avacalhado, ganhou roupagem de improviso de butique, com escadas e objetos meticulosamente colocados paradar a impressão de que o improviso continuava. Ficou com jeito de roupa de jeca em quadrilha de colégio de classe média alta.Os cartazes eram feitos pela produção, em papelão colorido em recortados em formatos caprichados. Os dizeres eram tão ruins que não me lembro de nenhum.


Após o estágio de burguesia, a Globo arrebatou o Faustão, que é como ele próprio se denominava. Aí, o que estava ficando ruim piorou de vez. O cara virou um chato, careta, puxa-saco, enfim, tudo aquilo que a Globo consegue fazer com quem se dispõe a passar por isso, e ele parecia estar feliz em vender a alma ao diabo. (É a segunda vez que falo dele aqui, do capeta, não do Faustão. Vou fechar bem a janela antes de dormir. Vai que o chifrudo ache que estou querendo conhecer a fornalha)


Para não falar o nome pela terceira vez, acho que a negociação feita com aquele sujeito com cheiro de enxofre funcionou. O agora Faustão nunca viu tanto dinheiro na vida. Engordou, emagreceu, engordou de novo e emagreceu idem. Casou e descasou mil vezes. Frequentou Miami como se lá fosse um lugar interesante. Virou garoto-propaganda. Só não falou em política porque Luciano Huck chegou primeiro.


Não assisto televisão há anos. Creio que só devo ter visto o tal Domingão do Faustão umas duas ou três vezes, e não mais de cinco minutos. Soube de uns quadro bizarros, como o de um portador de nanismo que ele apelidou de Latininho, mas nunca cheguei a ver.


Antes, as pessoas se deprimiam no domingo à noite quando ouviam a música do Fantástico. Com o Faustão, a depressão começa mais cedo, com aquele vozeirão ecoando nos corredores.


Ainda me protejo sob a guarda da Netflix, da Amazon Prime e outras. Espero que esse sujeito não venha se aventurar nos canais de streaming. Ô Lôco Sô!



Rio de Janeiro/RJ, 25 de janeiro de 2021


domingo, 24 de janeiro de 2021

Passageiro

Nos primeiros dias de 2021, no aeroporto de Detroit, três passageiros espancaram um agente da Spirit Airlines que pediu para verificar seu suas bagagens de mão estavam dentro dos limites permitidos para embarque na cabine. Diante da recusa, o agente impediu o embarque e foi covardemente atacado, precisando ser levado para o hospital, dada a gravidade dos ferimentos.

Os passageiros foram detidos e não mais poderão voar por aquela companhia. Preovavelmente, serão processados, pagarão alguma indenização leve e o caso termina por aí. Quando começo este texto fazendo referência aos primeiros dias de 2021, a intenção foi a de chamar à atenção para um ato de selvageria que deveria soar estranho na entrada da terceira década do século 21.
Que o mundo parece andar para tras, isso é inegável. O ataque ao Capitólio foi a consagração  do ambiente de hostilidade que permeia as redes sociais e os debates políticos. O mais grave é que este comportamento é incentivado por líderes que deveria dar o exemplo contrário. Quando se poderia imaginar que o país que se arvora de guardião da democracia teria um presidente, democraticamente eleito, que não se conformaria com a derrota que pos fim ao seu projeto de reeleição. Não se conformar é seu direito, mas não quebrando as regras que exige de outros países.
O episódio de Detroit é o espelho de como caminha a humanidade. Aeroportos e aviões, há algum tempo, tem sido palco de cenas grotescas, e isto não se deve à popularização das viagens aereas. A maior parte dos protagonistas está situada naquela camada da sociedade onde se esperava maior civilidade. Ao contrário, é a casta que se acha superior que não se conforma em seguir regras ditadas por questões de segurança. Segurança para todos, inclusive para ela.
Até antes da pandemia, viajava a trabalho quase todas as semanas. Sendo vôos curtos e com estadias de, no máximo dois dias, muitas vezes levava apenas uma mochila, que acondicionava sob o assento dianteiro, para que os bagageiros superiores ficassem disponíveis aos passageiros que levavam malas de pequeno porte. Por vezes não contive minha indignação com usuários que embarcavam com três ou mais volumes e os acomodavam nos bagageiros, um ou lado do outro, não sobrando espaço para os que ainda não tinham ingressado na aeronave.
Certa vez, perguntei à comissária se a tripulação não podia exigir que as mochilas e bolsas fossem retiradas do compartimento superior e acondicionadas sob os assentos dianteiros, como é solcitado desde a fila de embarque, ao que a mesma respondeu que não há o que fazer quando o passageiro se recusa. Ou seja, prevalece a lei do mais esperto, já que se cristalizou o entendimento de que desrrespeitar a regra do convívio social é esperteza.
O que observo, e aí é só observação mesmo, é que as pessoas se sente diminuidas em acatar as instruções repassadas pelos comissários. Vivemos em um país com cacoete de farda. Talvez se a solicitação partisse  do comandante, ostentando quatro berimbelas, que é o nome que se dá às faixas nos ombros dos uniformes, as ordens seria acatadas de imediato. Brasileiro não respeita quem demonstra, pelo traje, que existem instâncias superiores. Chamar Comissária de Bordo de aeromoça é tão ultrapassado quanto vulgar. Comissários tem a missão principal, e são muito bem treinados para isso, de assegurar a segurança dos passageiros, em caso de ocorrências durante a viagem, inclusive acidentes.
Sinto vontade de intervir quando vejo o Comissário instruindo sobre a posição dos assentos, na decolagem e no pouso, a proibição do uso de celular, o recolhimento da mesa e a desobstrução da passagem, e, mesmo assim, a maioria dos passageiros se faz de surda e agem como se aquelas orientações fossem apenas uma sugestão.
A FAA (Federal Aviation Administration) anuncia que vai elevar o valor das multas e dar ordem de prisão a passageiros que não se comportem de acordo com as normas de segurança. Não haverá aviso prévio. Passa a vigorar tão logo se definam os parâmetros. Não gosto de autoritarismo, mas aqui é diferente.  Proteger todos não é autoritarismo. Desobedecer ostensivamente é abusar de um poder que não se tem.
Este tema me incomoda tanto que outras vezes a ele voltarei. Não duvido que, em muitos casos, o medo seja o motivo deste comportamento inadequado. Quem sabe a alma de um rato não se esconde sob a carcaça de um gorila.  

Rio de Janeiro/RJ, 24 de janeiro de 2021

sábado, 23 de janeiro de 2021

Escolhas

A cada dez livros de aconselhamento, muitas vezes conhecidos como auto-ajuda, nove falam da importância de se fazer boas escolhas. Ainda que não seja de imediato, esta escolha vai influenciar fatos futuros em nossas vida. Cada vez que acontecer algo, basta olhar para tras e vamos entender o porque do momento vivido. Parece conversa de doido em cima da roda do tempo, mas comecei a observar e vi que faz sentido.

O sujeito acorda com a porta de casa sendo esmurrada. Atende, de mau humor, e dá de cara com um oficial de justiça e dois soldados. Lê o documento que lhe é apresentado e percebe que vai ser despejado. Não amanhã nem na semana que vem. É agora. Se não tiver onde botar os móveis, estas vão para o meio da rua. O termo despejo é amplo. Vão despejar tudo que está no interior da casa, inclusive os moradores. Antes de praguejar, por a culpa na ex – mulher, que nunca fez nada para ajudar, no pai, que nunca o entendeu, na mãe, que o deixou mal acostumado com seus socorros financeiros e deixou esse mundo levando o direito à minguada pensão. Culpou o emprego, que detestava a ponto de abandonar sem ter outro em vista. 

Na calçada, olhando sem graça para os vizinhos e dando a desculpa que o caminhão de mudanças se atrasou, por isso os móveis estão espalhados ali, pensa até em se matar, ou melhor, não pensou para valer. Depois de umas lambadas da vida, a gente aprende que ruim com ela, pior sem ela. Morto não sente nada, o que significa que também não passa por coisas boas. Melhor continuar por aqui. Do nada, surge um amigo, igualmente desempregado, mas que se identifica como coach, que é muito mais digno. Contando suas desventuras, o que é desnecessário, com uma casa desmontada a céu aberto, responde a várias perguntas até que identifica que nada daquilo é castigo, praga ou coisas do gênero. Está ali porque fez a escolha de não pagar o aluguel. Cismou que dar dinheiro a quem não trabalha não era justo. A propriedade é invenção da humanidade. Quando o mundo começou, ninguém era dono de nada. Se vivesse naquele tempo, não pagaria aluguel e seus móveis não estariam na rua, até porque não existiriam móveis nem rua.

A conversa com o coach não foi de todo ruim. Continua sem ter para onde ir, mas está orgulhoso de ter provocado aquela situação. Se fosse um terremoto, estaria se lamuriando, ou nem isso. Como não há terremotos no Brasil, ele estaria em outro país, o Japão, talvez. Não sabendo falar japonês, ia se lamuriar por gestos, e aí haja talento para mímica. Agradece o conselheiro e pergunta o que faz agora, que já sabe que os acontecimentos são frutos de suas escolhas. Escolher, oras, apenas fazer novas escolhas. Se não souber o que escolher, que cuide da memória para se lembrar, daqui a um tempo, o que fez hoje. Pelo menos vai reforçar que sua vida não anda ao acaso.

Não pagou a consulta porque não tem um puto no bolso. O coach o tranquiliza dizendo que aquela sessão foi “pro-bono”,  ou seja, de graça. A maior parte dos coaches que conheço trabalham assim. Não sei do que vivem e como vivem. Onde moram e o que comem. Como acasalam e quantos nascem em cada ninhada. Há tempos não assisto televisão. Foi escolha feita no passado, mas agora não sei se ainda existe o Globo Repórter, que podera responder estas questões.

Nem sempre as escolhas levam tanto tempo para influenciar nosso presente. Hoje, acordei bastante estropiado, consequência de escolhas normalmente feitas nas sextas feiras à noite. Fiz café e passei geléia de morango em uma fatia de broa. Quando fui levar à boca, uma porção da geléia caiu na caneca de café. Bebi assim mesmo e ficou até gostoso, pelo menos ficou diferente. Neste momento, fiquei orgulhoso de minha escolha. Do jeito que eu estava, podia ter passado bosta da cadela no pão. Voltando ao coach, nada acontece por acaso.


Rio de Janeiro/RJ, 23 de janeiro de 2021


sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

A.I.D.S.

Guardar papel velho não deixa de ter suas vantagens, mesmo com os ácaros que nos atacam quando revolvemos as gavetas, caixas e pastas onde os guardamos (os papéis e os ácaros). Hoje, encontrei um exemplar, de julho de 1987, do jornal da Associação do Pessoal da Caixa Econômica, que trazia os nomes dos vencedores do concurso de literatura daquele ano. Fui classificado em segundo lugar, com o conto A.I.D.S., que deve ser lido considerando que os anos o envelheceram e as coisas não fazem mais tanto sentido. Naquele ano, a AIDS era uma doença mais tenebrosa do que hoje. Incurável e com enorme carga de preconceito. Pessoas que se diziam de bem, sequer dela falavam, como se as palavras fossem infectá-las. Daquele ano, a melhor lembrança que trago é o nascimento da minha doce Lara.

Nem que seja para matar a curiosidade, vou transcrever o conto que me valeu uma placa de premiação. A propósito, o terceiro lugar foi ara o conto Vida de Enlouquecer, do meu amigo Bira Porto, que nos deixou semana passada, de COVID, o vilão da vez. Vamos, então, ao meu conto:

- Papai, AIDS mata?

Aquela pergunta foi recebida pelo desembargador Fontana como um murro no estômago. Não pelo conteúdo da pergunta em si, mas pelo inusitado da situação, afinal, ele sempre se dispôs a manter diálogo com seus dois filhos e até disso faziam questão. Os assuntos, porém, eram muito diversos daquele contido na inesperada questão, afinal Rui (homenagem ao seu ídolo e inspirador) ainda não entrara na casa dos treze anos e já lhe fazia perguntas de tal calibre. Não se surpreenderia caso tivesse que responder sobre compositores clássicos, escritores ou outro assunto que julgasse necessário à boa formação cultural das crianças, afinal, nascido e criado em Belo Horizonte, bem ao estilo da tradicional família mineira, sempre buscara ilhar sua pequena prole nestes eruditos e, principalmente para as crianças, maçantes temas.

O pequeno Serafim, com seus parcos seis anos, já não ousava acompanhar as destrezas de seu outrora herói He-Man, pois a cada aventura assistida, correspondia uma longa preleção sobre os verdadeiros heróis da pátria amada, além, é lógico, da televisão ser desligada antes de terminado o episódio, pois, se dele dependesse, o super herói continuaria dando mais pontos no IBOPE do que Tiradentes ou Caxias, uma vez que estes nem ao menos mereceram ser personagens de desenhos animados.

Dentro desse clima, estilo Rádio MEC, o desembargador Fontana tentava formar sua descendência, ajudado pelo fato de não ter nenhum relacionamento com a vizinhança (se achava superior), que poderia subverter suas ideias, além de contar om o apoio da submissa esposa, Matilde, que não se atrevia a contestá-lo.

Ora, ora, pichorra, por que este governo não vai se preocupar com suas contas, ao invés de entronizar tão desagradável assunto em lares cristãos? Quem inventou essa malfadada campanha pela televisão, no mínimo, sofre de mal maior, e na cabeça.

- Mata ou não mata?

Diabos, como será mesmo que se safou aquele sujeito da história do “plebiscito” [1]? Bem, afinal a coisa não é tão grave quanto parece. O pirralho quer apenas saber se esta coisa é letal ou não, as circunstâncias em que a doença é adquirida não me foram perguntadas.

- Mata sim meu filho, mas não precisa falar neste assunto, porque em gente como nós essa doença não pega.

- Verdade mesmo?

- Não duvide de seu pai, Ruizinho.

Pronto, que martírio mais sem sentido ele havia criado. Com uma simples resposta, criada na hora, sem qualquer esforço de inspiração, voltava a reinar naquela casa o austero ambiente dos melhores lares da Savassi, lembrando-lhe a longínqua e saudosa Beagá.

De igual tranquilidade desfrutava o pequeno Rui, preparando-se para um despreocupado sono, satisfeito ao saber que a imunidade familiar, anunciada pelo pai, o livraria de uma vez por todas dos incômodos preservativos, que acabava de lançar pela lixeira.

 

Rio de Janeiro/RJ, 22 de janeiro de 2021



[1] Conto de Artur Azevedo (1855-1908)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Mãe

Me propus a publicar uma crônica, um conto, um ensaio, uma provocação, enfim, alguma coisa todos os dias de 2021, no meu blog.  É claro que um compromisso assim às vezes preocupa. Nem sempre estou com alguma ideia na cabeça. Aliás, isso não é o problema. Sempre estou pensando em algo diferente e provocativo. O que nem sempre estou é com vontade de transformar em texto publicável. O mínimo de consideração com quem me lê  preciso ter.


Hoje, domingo ensolarado, com possibilidade nenhuma de ir à praia. Como diz uma amiga italiana, não matei ninguém, para merecer tamanho castigo, mas,  quem nasce com espírito de indigenista, acaba achando um programa de índio para fazer, e, hoje, com quarenta graus e sol a pino, resolvi ir à feira da Glória, com duas cadelas endiabradas, para comer um ceviche legitimamente peruano, incluindo a descida e a subida para Santa Teresa. É claro que tive que tomar algumas cervejas para não morrer de insolação.

Bem, o resultado é que estou um lixo de criatividade. Por sorte, porém, reli minha determinação de começo de ano e reparei que falo em publicar, o que não necessariamente implica em ser algo de minha autoria. Também não vou ser tão canalha a ponto de copiar algo não tenha nada a ver comigo. Remexendo alguns papéis, que guardo tanto na gaveta quanto no coração, 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Metrô

O título seria Axila, mas como Rubem Fonseca já tem um livro chamado Axilas e Outras Histórias Indecorosas, achei melhor não plagiar, o que nao deixa de ser uma presunção sem tamanho. Rubem Fonseca jamais saberia que escrevi algo assim e, portanto, não iria me acusar de nada. Ainda que soubesse, nada ameaça a obra do talentoso e mal-humorado escritor. Mas todo cuidado é pouco, afinal o homem é ex-policial e tem uma predileção para escrever contos de assassinatos cruéis, quase sempre por motivos fúteis.  

A intenção não é falar do metrô, mas é ali onde começo o dia vendo axilas, ainda que não tenha nenhuma tara por elas. Ao contrário, elas que parecem me perseguir. Em uma cidade quente como o Rio, onde o inverno é só um nome de referência para a época do ano, é comum que as mulheres dispensem mangas de vestidos e blusas, deixando à mostra parte do corpo que diz mais a respeito do cuidado pessoal do que outros nacos que o calor exige que sejam exibidos.

Não se pode dizer que a mulher seja descuidada porque tem bunda ou peitos caidos. A lei da gravidade é implacável e talvez até pior para os homens, que não tem como manter indefinidamente escondido o que caiu.

O metrô não tem assentos disponíveis para todos, e foi-se o tempo em que homens cediam seus lugares para as mulheres, talvez nos bondes, quando não se via tantas mulheres circulando pelas ruas e muito menos indo para o trabalho. A mulher de hoje viaja de pé e pendurada nas alças presas ao teto dos trens, expondo o sovaco, em sua maioria cuidadosamente depilados,  aos demais passageiros.

Como a falta de comodidade nem sempre permite ler, já que com uma mão no livro e outra na alça falta uma terceira para passar as páginas, há algum tempo me distraio tentando decifrar o que se econde por trás da axilas escancaradas nas manhãs subterrâneas. A luz fluorescente dos trens e a proximidade obrigatória entre os passageiros permite exame minucioso sem que eu seja espancado como tarado.  

Pessoas que observam detalhes são mais mal vistas do que aqueles que olham o todo. Pedreiros são odiados porque demonstram só estar interessados na bunda, tanto que só assobiam depois que a mulher já passou. Enquanto estão de frente, ficam intimidados. Para os admiradores de pés a vida é mais fácil. Basta andar cabisbaixo para ter a visão confortável do objeto de desejo, e ainda despertam pena por parecerem deprimidos.  

O sovaco muito liso, com a mesma cor do resto do corpo, sem nenhum pelo à mostra e inacreditávelmente seco demonstra foi depilado por algum método caro e sofrido, além de receber esmerado tratamento posterior, para que não fique irritado. Quem se daria a tanto trabalho, provavelmente diário, se não tivesse uma imagem a preservar? Advogadas, financistas? Terapeutas, talvez, mas da nova geração. As freudianas clássicas já estão mais passadas e não ligam muito para a aparência, além de já terem ganhado o suficiente para dispensar o metrô.

Sovacos esverdeados denunciam que foram tosados pelo barbeador, mesmo que sejam aqueles  cor-de-rosa fabricados para as mulheres, mas que fazem o mesmo estrago dos masculinos.  A vantagem é que a tosa pode ser feita no banho, economizando tempo. Imagino ser o método preferido de corretoras de imóveis, que marcam visitas muito cedo, para ganhar da concorrência. Hoje, os proprietários de imóveis anunciam em mais de uma imbiliária, fomentando a autofagia da classe.

Há algumas décadas, a mulher demonstrava sua libertação através de símbolos nem sempre compreensíveis, como a queima de sutiãs em praça pública. Se nunca mais tivessem usado o acessório, até dava para entender, mas o sutiã é vendido cada vez mais e virou artigo de luxo. Hoje, ninguém botaria fogo em um sutiã da Victoria`s Secret. É mais provável que queimasse o marido.

Em Veneza há um pub que inovou na decoração, com centenas de sutiãs pendurados no teto. A mulher que deixar  o seu ali ganha um drinque, com a vantagem de que a escuridão não permite avaliar o estado nem a marca. Vale guardar os que estavam selecionados para o lixo e fazer o escambo no bar.

Outra forma de enfrentar a submissão foi deixar crescer os pelos do sovaco.  Houve quem achasse bonito e até sexy, o que fez com que a idéia fosse abandonada, já que a atração não estava no contexto da rebeldia. O sovaco peludo deveria chocar a sociedade, demonstrar igualdade e selecionar os homens de mente aberta, que não demonstrassem  repulsa ao matagal, mas quando virou fetiche perdeu o sentido, ou melhor, inverteu o sentido.

Hoje há mais homens que raspam debaixo do braço do que mulheres que não o fazem. Quando questionados, e deve ter gente com falta de assunto para pesquisar isso, respondem que os nadadores raspam todo o corpo para melhor desempenho nas competições. Tudo bem, mas essa resposta só vale se o cara for nadador.

A natureza pode ser sábia, mas talvez não tão coerente. Se pelos nas axilas fossem tão necessários os índios os teriam, mas o sovaco deles é  liso como uma casca de ovo. Já li que índio não tem pelo para não atrapalhar a caminhada pelo mato, o que seria razoável desde que o urso também nascesse pelado.

Quando criança, folheei uma enciclopédia no escritório do meu avô e, com a curiosidade de quem está com os hormônios despontando, encontrei um estudo sobre a vida sexual dos índios. Não me lembro dos detalhes e nem das tribos pesquisadas, mas havia a descrição de um rito de acasalamento, que devia ser o nome pomposo para o que chamamos de preliminares. Se a memória não me trai, parece que o índio puxava a índia pelos sovacos, não sei se pela frente ou por trás, pouco importa, já que o difícil é agarrar alguém pelo sovaco, ainda mais não tendo pelos.

Rio de Janeiro/RJ, 19 de janeiro de 2021

(primeira versão em julho/2019)

 

 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Pilates

 

Chega um dia em que a gente se cansa de ouvir que o sedentarismo faz mal e devíamos procurar uma atividade física. Nada de exageros, alertam os médicos após fazer uma rápida avaliação de nosso estado geral. Para mim, isso soa mais como uma forma delicada de dizer que não aguentaremos muita coisa.

 

As sugestões confirmam a suspeita: uma caminhada leve e pilates. Pronto! Se nem bicicleta, que é um exercício suave, foi recomendado, é porque o tal de pilates deve ser uma moleza danada. A caminhada não conta, ainda mais sendo leve, porque é assim que me desloco de um lugar para o outro desde que decidi não ter mais carro.

 

Então, mais para desencargo de consciência do que qualquer outra coisa, assisto a uma aula experimental e faço a matrícula. Tem que ser assim, de pronto, para não correr o risco de desistir. Sei muito bem o que representa a expressão “vou pensar e depois decido”. Isso é quase um adeus.

 

Com a empolgação de todo sedentário que decide ter uma vida mais saudável, corro para a loja de esportes e saio de lá como um pentatleta. Camiseta de tecido antitranspirante, calção de malha importada

domingo, 17 de janeiro de 2021

Couvert Artístico

Couvert é uma expressão francesa que significa cachê, ou seja, o acréscimo sobre a conta referente ao que se consumiu no restaurante. Geralmente, este couvert abrange serviços acessórios, tais como, guardanapos de pano, pedacinhos de pão, pastas e patês, azeitonas, geléias, enfim, tudo aquilo que possa valorizar o momento vivido, quando se esperava, apenas, uma refeição correta e drinques de qualidade aceitável. Tendo, então, o couvert deixado esta experiência inesquecível, não há quem reclame em desembolsar um pouco mais do que a gorjeta convencional, geralmente estipulada em dez por cento. Ultimamente, alguns estabelecimentos cismaram de estabelecer o percentual de doze por cento, sabe-se lá porque. Em bares, o número não é bem vindo, pois remete aos doze passos da técnica utilizada pelos alcoólicos anônimos, para que o vício da bebida seja abandonado de vez.


Há uns anos, fiz terapia com uma psicóloga encantadora. Pessoa simpática e inteligente. Entendia tudo o que eu estava sentindo, ou melhor, quase tudo. Nossas sessões aconteciam em sua casa e o cachorro era convidado a se retirar do recinto. Cachorro, hoje tenho dois e posso afirmar, não é bicho que entenda de conveniência terapêutica. Tão logo me animava a abrir meu coração, o pulguento começava a uivar e arranhar a porta. Por sorte, abrir o coração não trazia nada de relevante para a terapia, pois meus podres escondo na alma, e esta nem sei onde se esconde. De qualquer jeito, passava o resto da sessão imaginando como conseguiria calar aquele maldito na próxima semana. A terapeuta insistia que devíamos fazer duas sessões semanais. Por dentro eu pensava que podíamos enforcar aquele vira-latas metido a yorkshire. Aí, sim, faria até sessões diárias, sem me preocupar com aquela estopa escandalosa.


Por que mesmo falei da terapeuta? Lembrei. Ela tratava de alcoólatras e drogados, e sabia de cor o método dos doze passos. Como bebo desde os quinze anos, sempre tive pavor de que alguma coisa me fizesse mudar de ideia. Recentemente, li que Fabio Assunção continua frequentando baladas, mas bebendo apenas água. Confesso que tive pena. Que graça tem ouvir conversa de bêbado estando careta? Mesmo tonto, não tenho paciência para algumas pessoas em estado alterado, o que dirá, então, escutar alguém terrivelmente ébrio e eu limpo como um querubim. Dai cismei que o número doze não combina com bar. Principalmente se for para gorjeta.


Hoje, resolvemos passear com as cachorras e paramos no bar de uma amiga. Estava com tanto calor que não reparei na presença incômoda de um músico na porta, com banquinho, violão, amplificador e caixa de som vagabunda, ou seja, armado com o kit aporrinhação completo. O cara tinha bom repertório. Beto Guedes, Milton, Fagner, Belchior, Lulu Santos, dentre outros. Tenho uma restrição com Lulu Santos, desde que ele assumiu seu casamento com Clebson. Nada contra a relação com alguém do mesmo gênero, mas, tinha que ser Clebson? Tenho amigos casados com André, Ricardo, Rafael, Wanderley e até com Marcio Greick, mas com Clebson nenhum. Fico imaginando Lulu Santos contando para sua mãe que ia se casar com um homem. Dona Lulina deve ter falado que nunca acreditou naquele casamento com alguém chamada Scarlet Moon. Completou dizendo que esperava que agora fosse feliz, o que não durou até ele dizer que o companheiro se chamava Clebson. Nenhuma mãe merece isso. Os cartórios deveriam ser proibidos de registrar tais miscelâneas.


Mas isso não tem nada a ver com a aberração que veio hoje para estragar as músicas escolhidas para tocar. O repertório, como já disse, era razoável, mas penso que o músico deve conhecer o mínimo sobre o autor, o intérprete ou sobre a época em que a música foi feita. O cara cantava Feira Moderna como se referisse à feira da Glória. Tocava Como Uma Onda pensando na bebedeira de ontem à noite. Tinha boa vontade, mas não tinha voz, conhecimento musical, equipamento e bom senso. Como ninguém prestava atenção, aumentava o volume do amplificador até que a bendita instalação elétrica do bar desse pane e acabasse com a barulheira. Foi o bastante para pedirmos a conta e dar no pé. Continuo a beber em casa, com latido e sossego para escrever. É o que estou fazendo agora.


Não sei se entro em mais algum bar com música ao vivo. Soube que há músicos especializados em velórios. Geralmente, é apenas um violinista, mas acho muito esquisito. A Indonésia, país execrável, executou dois brasileiros por tráfico de drogas, mesmo sendo o país mais corrupto do mundo, onde os policiais traficam drogas nas penitenciárias, inclusive para os condenados à morte. O segundo executado, Rodrigo, foi enterrado no Paraná e o cortejo foi acompanhado por um violonista. Até que tocava bem, e assisti com certa comoção.


Se até um conterrâneo, covardemente fuzilado em um país de merda, teve direito a música decente, por que sou obrigado a passar por tamanho suplício?


Rio de Janeiro/RJ,  17 de janeiro de 2021



sábado, 16 de janeiro de 2021

Capitólio

Há pouco mais de uma semana, poucos brasileiros sabiam que Capitólio é a sede do legislativo estadunidense. Antes que me critiquem por pedantismo, porque não usei a expressão americano, que é como nos acostumamos a chamar os cidadãos dos Estados Unidos, estou apenas exercitando minha identificação com os irmãos da América Latina, que também usam o termo estadunidense. Chamar os vizinhos do norte de americanos é descaracterizar nossa própria existência. Se apenas eles são americanos, o que somos nós?


Quando as primeiras notícias do dia seis de janeiro deram conta de que havia confusão no Capitólio, inclusive com mortes, o desespero tomou conta dos parentes de quem estava passeando lá pelas bandas da Serra da Canastra, na mais recente coqueluche do turismo mineiro, também chamada de Capitólio. Minas Gerais tem mais afinidade com os Estados Unidos do que o Bolsonaro, que faz continência para a bandeira deles. Minas tem Governador Valadares, o maior polo exportador de motoristas de limousines e baby sitters do Brasil, tendo os Estados Unidos como o principal parceiro comercial.


A praia de Minas, que é como nossa Capitólio é conhecida, recebe um bocado de gente, principalmente no verão. Na falta de hotéis, transformaram escolas, lojas e casas de família em pousadas. Pousada é aquele estabelecimento que não segue as regras rígidas do hotéis. Pousada sem banheiro no quarto anuncia que é a experiência de se sentir em uma típica casa mineira. Se não tem café da manhã diz que é a oportunidade para provar as delícias das padarias mineiras. Se não dá desconto na baixa temporada é para conhecer a pãodurice do mineiro, que anda com um escorpião no bolso para não precisar enfiar a mão. Isso é para pousada, mas, quando não tem nem isso, é só mudar o nome para hostel.


Capitólio pode ser toda essa bagunça, mas por uma boa razão. Quem encara a aventura encontra natureza encantadora e o carinho do povo mineiro. Não vai se arrepender. Agora, quem foi ao Capitólio, sede do legislativo dos Estados Unidos da América, assistir  a homologação de Joe Biden como novo presidente da república, quebrou a cara, literalmente, porque a porrada correu solta por lá. Quem imaginaria que a consagração do momento sublime da democracia fosse sabotada por ordem de quem chegou ao poder graças a ela.


O Capitólio estadunidense existe há mais de duzentos anos, possui simbologia maçônica e representa a vontade soberana do povo. Aquí, temos o prédio do Congresso Nacional, com sessenta anos e as linhas disruptivas de Oscar Niemeyer. Não tem nada a ver com a maçonaria, mas os bodes já influenciaram em muito do que ali foi discutido.


Temos uma democracia capenga, que se reconstrói a cada espaço de tempo, tateando como um bebê inseguro, com receio de caminhar. Quando pensamos que as coisas engrenaram, temos manifestações ditas populares, manipuladas por grupelhos de péssimas intenções, golpe parlamentar, eleições influenciadas por mentiras espalhadas nas redes sociais, através de empresas especializadas em ações ilegais. 


Quando buscamos a paz social, elegemos maníacos que insuflam a discórdia agressiva entre brasileiros. Quem bate no peito para gritar o lema da bandeira “Ordem e Progresso”,  desconhece que, como nos inspiramos de forma abreviada, na frase do filósofo francês Auguste Comte: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”, nosso lema deveria ser “Amor, Ordem e Progresso”. 


Como deturpam o sentido de Ordem e de Progresso, difícil seria fazer entender o sentido de Amor.



Rio de Janeiro/RJ, 16 de janeiro de 2021.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Biografia

Há uns dois dias, li a respeito de um escritor nórdico que escreveu o quinto volume de sua autobiografia. A incerteza dos dados se debe ao fato de que não estou localizando a reportagem, o que vou continuar buscando. Não se trataria de fato tão inusitado fosse o autor alguém com notoriedade que resolvesse compartilhar experiências de vida com seu público. Ocorre que, antes de publicar sua biografia, o escritor era um liustre desconhecido e sua fama veio com a divulgação de sua história. Não possui também uma saga tão extraordinária, mas, sim, capacidade incomum de cativar os leitores.

Me pergunto o que leva alguém a escrever sua própria história com a convicção de que será um best seller. Certamente, tinha confiança em sua capacidade de descrever uma vida comum, com tamanha destreza, que o interesse vem mais por seu estilo. Não é algo tão incomum. Alguns escritores despontaram no mercado editorial a partir de sua biografia, ou de parte dela.
José Mauro de Vasconcelos se tornou ume celebridade com seu delicioso romance autobiográfico “Meu Pé de Laranja Lima”, guindado à categoria dos clássicos nacionais. Lágrimas escorreram sobre as faces dos futuros leitores de Rosinha Minha Canoa, Arara Vermelha, Arraia de Fogo e mais uma vigorosa quantidade de romances. Quis o universo que sua existência fosse breve, talvez por isso tenha tido essa explosão de criatividade. Não haveria tempo a perder.
Tenho lido muitas biografias e consigo citar as últimas. Ao terminar a de Marighela, emendo na da Agatha Christie e em seguida na do Woody Allen, que ganhei hoje. Não dá para acreditar em Sérgio Moro, quando, no programa do Bial, perguntado se lia, respondeu que sim e que sua preferência era por biografia. Quando o entrevistador perguntou quais ele tinha lido, o cara de pau respondeu que tem a memória muito ruim e não se lembrava. Mesmo com a insistência de que bastava citar um, ele se recusou e disse que a memória é muito ruim mesmo. Não se lembrava de absolutamente nenhum livro. Esse cara é muito estranho. Tirou o processo do Lula do fim da pilha e julgou a toque de caixa. Botou o cara na cadeia e deu uma facilitada para o Bolsonaro ganhar a eleição. Virou ministro e pediu uma pensão especial para a família, caso viesse a morrer por conta do cargo. Foi tratado como estafeta de chefe tirano e, mesmo ganhando ingresso para ver jogo do Flamengo, com a camiseta por cima da camisa social, decidiu abandonar o barco. Depois, faturou um empregaço, uma sinecura, ganhando uma baba para ajudar na recuperação da Odebrecht e outras empresas que a Lava Jato quebrou, quando podia ter punido apenas os dirigentes. Sei não, acho que um sujeito que vive de expedientes não tem tempo para ler nada. Fica só maquinando o que vai armar para se dar bem. O cara é tão estúpido que podia ter dito que leu a biografia do Roberto Marinho, escrita pelo Pedro Bial, em um surto de puxasaquismo. A entrevista foi uma merda, mas eles se merecem. Não teria vergonha de dizer que assisti, mas não assiti mesmo. Só vi o trecho da memória de peixe.
Já li alguns livros do Paulo Coelho, mas ainda achava mais interessante as músicas que ele fez com Raul Seixas. Mas, melhor ainda, é a biografia dele – O Mago – que comprei por dois reais em uma barraquinha de rua. Aqulo não é vida, é delírio. Fico pensando como alguém sobrevive a tanta bagunça. E o cara sobreviveu, é conhecido no mundo inteiro, ficou milionário e tem a vida que muitos querem e poucos têm. Algumas biografias podiam ser livros de auto-ajuda. A dele é uma.
Li a biografia do Papa emérito Bento XVI. É o tipo de leitura que a gente começa já tendo spoiler, mas, mesmo se não tivesse, dava pra perceber que ele ia acabar virando papa, mesmo que só para dizer que chegou lá e depois encheu o saco. Gostei. Sério que gostei. Só achei que pela idade dele o livro poderia ter mais páginas. Gosto de biografias em tijolaços. Até a do Justin Bieber era maior. Acho que o papa pulou algumas partes, sabe-se lá porque. Na dúvida, prefiro achar que eram repetitivas, como devem ser os dias dos religiosos.
Biografia não precisa ser necessariamente séria. Dom Pedro I fez e aconteceu. Comeu um monte de gente, brigou com o pai publicamente e virou imperador, compôs o hino da independência, voltou para Portugal e virou Pedro IV, morreu novo com sífilis e mais um monte de doenças próprias de quem leva uma vida desregrada. A única biografia que li dele foi “As maluquices do imperador”,  de Paulo Setúbal. Dá pra rir até rachar.
Já ganhei algumas biografias de fundadores de empresas que visitei a trabalho. Achei elegante o gesto, com o biografado e comigo, mas não cheguei a ler tudo. Não deixei de lado, o que seria desconsideração, mas li trechos pinçados. Aprendi que todo mundo tem fatos interessantes em sua vida. Talvez até eu tenha, mas deixo que os outros descubram.
Sendo ateu, ainda assim me interessa saber como viveram os santos e li a Legenda Áurea. Recomendo e não entendo como pessoas tão beatas não tem interesse nisso. Os santos morriam quase sempre de forma trágica. Creio que era um símbolo de status. Dentada de leão no Coliseu, lança de romano e fogueira eram passaportes para a santidade. Morte morrida não dava prestígio, a não ser que o corpo fosse levado para os céus, por anjos bochechudos, de camisolinha e jogando pétalas de rosas.
Já pensei em escrever sobre minha vida, mas não sei se alguém ia querer ler. Aliás, sei sim. Minha filha e minha mulher vão querer. Mas vou escrever tudo, porque se escrever só as coisas boas vai ser um cordel. Mentira que acho isso, falei só para parecer humilde, mas não sou não. 
E você, o que acha da sua vida? Escreva sua biografia e você se conhecerá.

Rio de Janeiro/RJ, 15 de janeiro de 2021

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Fui promovido, e agora?

 

Leonardo foi aprovado em um concurso público. Passou para a caixa! Leonardo se destaca e é apontado como a promessa da empresa. Outras expressões marcam sua trajetória: revelação, estrela, talento e tudo o que possa mantê-lo no caminho do sucesso. As metas não o assustam. Citado como exemplo, torna-se ameaça àqueles que ponderam sobre o ritmo estipulado de produção e prazo. Leonardo aprende que questionar é o caminho mais curto para a estagnação da carreira. Jamais será como um daqueles ultrapassados, pensa. Se muitos fizeram pela Caixa, agora é a nossa vez. Vamos lá, Leonardo! – A juventude tem sangue a ousadia. Faça a diferença! Assim você chega lá! Você só precisa continuar sendo efetivo. E Leonardo é promovido! Como era de se esperar, ocupou o lugar de um “acomodado”. Ele tornou-se Gerente! E agora, Leonardo? A vida dele muda! Uma estranha estrutura salarial faz com que sua renda triplique da noite para o dia. Ele desengaveta seus sonhos e o casamento é o primeiro. Diz o dito popular que quem casa quer casa. E Leonardo agora tem renda para financiar o imóvel dos seus sonhos. Nada exorbitante, mas e fundamental que tenha um quarto para o bebê, que já está a caminho, e uma garagem para o carro novo. Leonardo nunca imaginou que o salário de gerente comportasse tantas prestações. Leonardo agora tem motivos para ser mais cauteloso, e as histórias de colegas que tiveram suas carreiras interrompidas fazem com que modere sua forma de agir. Para o sistema, Leonardo “tirou o pé do acelerador”, e isso é imperdoável. Leonardo é chamado para um “ponto de controle”. - A aposta foi alta e você não pode decepcionar. O recado foi dado, e Leonardo entendeu direitinho. E agora, Leonardo? Seu filho e sua mulher dormem. No silencio da madrugada você não consegue pensar em nada que não seja o medo de perder o que conquistou. Se deixa de ser gerente, seu salário mal da pra pagar o condomínio e a creche. E agora, Leonardo? Leonardo decide que vai continuar a ser o profissional que a empresa espera, mas sem fazer qualquer loucura.    Comenta com seus superiores, que o apoiam de forma entusiasmada. – É isso mesmo, Leonardo! Não é para fazer errado, mas... é para fazer! – Ah Leonardo! Só  para lembrar que a empresa decidiu que o ano termina em outubro e as metas para o último trimestre foram aumentadas. Você terá que fazer mais em menos tempo. Contamos com você! Use sua criatividade! Leonardo foi criativo. Fez o que não devia e não fez o que devia. Leonardo não é mais gerente. Os empréstimos de Leonardo estão inadimplentes. Possivelmente perderá casa, o carro e o emprego tão sonhado. Já perdeu o respeito dos colegas e dos chefes, que se dizem traídos. – Esse menino sempre foi muito vaidoso. Ia acabar mesmo aprontando alguma. Não há nada de tão ruim que não possa piorar. Leonardo é réu em processo criminal. A historia de Leonardo é fictícia, mas muitos de vocês devem estar jurando que conhecem o personagem. É natural. Há algum tempo muitos Leonardos foram criados  por conta da priorização de resultados a qualquer preço. Na iniciativa privada há uma forma nefasta para essa forma de agir. O CEO é contratado a preço de ouro, com bônus sobre o resultado. É estabelecido um prazo mínimo de permanência na empresa e a quebra do contrato é regiamente indenizada. No primeiro ano, o resultado é surpreendente. As metas são absurdas e os investimentos postergados. Pagamentos a fornecedores são atrasados, não há contratação e reposição de empregados. Os números fazem a alegria de controladores e acionistas. A bonificação do CEO é polpuda e incontestável. Não existe almoço de graça e a conta chega no ano seguinte. O custeio já não permite adiamento e as operações mal sucedidas afetam negativamente os resultados. O salvador da pátria é dispensado e, por conta de cláusula contratual, embolsa polpuda indenização. Negócio bom, não é? Quem paga a conta? Os acionistas, é claro! No IBGC – Instituto Brasileiro d Governança Corporativa somos orientados a agir de forma a não permitir estas ocorrências nas empresas em que participamos do Conselho de Administração. Quando detectada a manobra acima, a Comissão de Valores Mobiliários – CVM , que defende os interesses dos acionistas e a saúde financeira do mercado de ações, impõe pesadas multas à empresas pelas operações mal sucedidas. Para se safar, a organização apresenta sua estrutura de conformidade e alega que os prejuízos foram causados por ação individual, já que nunca houve ordem para burla das regras estabelecidas. Em muitos casos a multa é reduzida e o dirigente sai como enganado em sua boa fé. Mas, e na empresa pública qual a motivação, já que não há bônus sobre resultados? Podemos falar em vaidade? Não será o prestígio um bem valioso? Afinal, nem sé de pão vive o homem. Trazendo Leonardo de volta, no setor público a coisa é um pouco mais pesada, apesar de não haver sanção da CVM. Como tratamos com recursos públicos, o assunto não pode ser resolvido de forma caseira. A existência de prejuízo  obriga o oferecimento  de notícia crime que, cada vez mais frequentemente, deságua em ação criminal na Justiça Federal. O judiciário, ainda que independente, por vezes parece render-se à opinião pública formada pela mídia, que exige procedimentos espetaculares para alavancar suas vendas. Na Caixa, a existência de uma estrutura de governança corporativa tem livrado o dirigente de ações cometidas por empregados. O que os Leonardos fizeram é problema deles. Ninguém mandou fazer errado e jamais se suspeitou que as coisas não estivessem andando na linha. Incontestável? Até então sim, mas talvez haja luz no fim do túnel. Durante o X Fórum Nacional de Prevenção a Crimes Econômicos, indaguei ao Procurador Geral da República Artur Gueiros, que proferia brilhante palestra  sobre “ Compliance Criminal: Atribuições de Responsabilidade Individual nos Crimes Empresariais”, se quando a direção de um banco, a despeito histórico de resultados, aumenta substancialmente a meta e exige seu cumprimento em prazo exíguo, não está estimulando a ousadia de seu corpo funcional a ponto de por em risco a segurança das operações? E quando estes resultados são apresentados, em total dissonância ao histórico de resultados, não seria de se esperar uma análise mais aprofundada dos métodos utilizados? Para minha satisfação, o representante do Ministério Público Federal assentiu e deu a entender que é uma tese passível de ser desenvolvida. O país vive um momento crítico. A  sociedade aturdida endossa ações que possam vir a quebrar regras do estado de direito. O arrolado, que na definição do normativo interno é definido como “incluído no Processo Disciplinar e Civil, na condição de provável responsável por irregularidade ocorrida na vigência do contrato laboral”, hoje é visto como propenso fraudador contra quem devem ser adotadas medidas extremas de preocupação. É possível medir a extensão dos danos causados ao empregado? Certamente que não. Este será sempre credor de reparação. 


Publicado no Jornal da FENAG em 2015 (atual até hoje)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Sozinho

Acabo de ler um texto curto e inspirado, sobre a arte de ficar sozinho. O nome do artigo é “Ficar sozinho nunca foi um problema para mim” e o autor é o Professor Marcel Camargo, que não conhecia.  O blog Resiliência Mag é depositário de seus textos, o que é uma ideia maravilhosa e que há um tempo comecei a fazer também. Criei o blog O Piso Molhado, mais para guardar o que escrevo do que para causar algum tipo de reação. Assim me exponho mais, porque fico à vontade para botar para fora o que vier na cabeça. Assisto todos os dias os vídeos do canal de Henry Bugalho, do qual sou membro contribuinte. Henry é escritor, hoje bastante conhecido, mas, no início, não era assim. Há poucos dias ele falava que quando começou a escrever se sentia um pouco frustrado porque não tinha leitores e não recebia qualquer comentário. Por outro lado, não se sentia obrigado a agradar seu público, até porque não tinha público nenhum. Hoje, seus leitores esperam dele coerência com as publicações já feitas, o que poderia acabar por afetar sua espontaneidade. Só não afeta porque ele se consegue enxergar que a pluralidade de sua obra pode ser seu diferencial.

Comecei este texto falando da arte de ficar sozinho e até agora só falei de outras pessoas, mas tem tudo a ver com o artigo do Marcel Camargo. Em determinado trecho, ele diz que quando está sozinho navega na Netflix, dedilha seu piano e escutas as playlists de sempre. Ficar sozinho tem essa magia que poucos entendem. Se hoje conheço seu blog , o canal e os livros do Henry Bugalho é porque aproveito meus momentos de solidão para descobrir novos autores, novos e velhos filmes, pensar em coisas que não existem ,até que passem a existir, sonhar sonhos desejados e sonhos que não me interessa realizar. Sonhar por sonhar é uma forma de peneirar os pensamentos e guardar aquilo que vale a pena guardar.

Quando estou sozinho, posso falar sozinho, é claro, mas não falo porque é o momento em que aproveito para ouvir, nem que seja o silêncio. Sinto cheiros que me remetem a tempos idos e me fazem ter vontade de criar tempos igualmente inesquecíveis. Penso em amigos que se foram e em amigos que chegaram. Penso que as perdas talvez sejam apenas a criação de espaço para que o novo venha, e isso vale para objetos, pessoas, momentos e sensações. É tudo uma questão de observar, de perceber.

Já tive inveja de monges, que passam a vida meditando, mas hoje não sei se são livres. Não sei se aprenderam a meditar sem um roteiro. A busca pela elevação espiritual pode ser tão incômoda quanto qualquer busca. Gosto que as coisas surjam. Há coisas que precisam ser buscadas, mas isso geralmente é necessário para o lado prático da vida. Não me refiro a essas coisas. Se quiser evoluir, que seja uma evolução serena, que não me exija avaliar o quanto já percorri e o quanto ainda falta percorrer. Não quero me sentir obrigado a nada. Para isso já existem as obrigações, e todos as temos.

Ficar sozinho é mais do que prazer, é necessidade, é liberdade, é se preparar para estar com os outros. Não sei como lidaria com pessoas se não reservasse um tempo só para mim. Acho que enlouqueceria, e não sei se iam gostar de mim. Tem maluco bom de conviver, engraçado, prestativo, carismático, um maluco beleza, mas tem uns que não dá nem para chegar perto. Estes são furiosos e não gostam de gente. Gostam de ficar sozinhos para poder destilar o ódio do mundo e para se admirar. Não se ocupam em conhecer coisas novas. Acham que se bastam. Maluquice é uma loteria, então é melhor não endoidar.

Há anos, quando o navegador Amyr Klink fez uma viagem à Antártica e  encalhou propositalmente seu veleiro na Baía de Dorian, sabia que por um ano não sairia dali. Foi sozinho e levou um monte de coisas para passar o tempo. Gravou não sei quantas fitas cassete, levou uma caixa de relógios estragados para consertar, fez curso de dentista para o caso de algum canal precisar ser extirpado, enfim, fez de tudo o que não faria se estivesse em casa. Hoje, vive de palestras contando suas experiências. Nunca vamos saber se foram boas ou ruins. Ninguém assistiria a uma apresentação dele para ouvir reclamações. Gostando ou não ele vai dizer que foi maravilhoso.

Mas acredito que tenha sido melhor do que aquela família catarinense maluca que viaja amontoada em um veleiro pequeno. É como encher uma quitinete de gente, só que sem a possibilidade de ir para a rua beber um chope. Ali, se sair cai no mar. Estes escolheram viver o verdadeiro inferno em alto mar. Botar qualquer um daquela família para fazer o que o Amyr Klink fez ia ser interessante. O cara ia rasgar as velas do barco e arrancar o leme, para nunca mais voltar para casa. Antigamente se dizia que alguns pais de família falaram que iam comprar cigarros e nunca mais voltaram. Hoje ninguém mais fuma e, talvez, por isso tenha aumentado o número de crimes passionais.

Solidão é escolha. Tem gente que opta por nunca estar sozinho. Os mórmons, por exemplo, só andam em dupla. A melhor definição que ouvi sobre eles é que parecem testículos: são dois, um é maior do que o outro e só servem para encher o saco.

 

Rio de Janeiro/RJ,  13 de janeiro de 2021

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Barata

 Tenho muita inveja de quem não tem medo de barata. Não é de quem diz que não tem medo, mas de quem não tem medo mesmo. Há uns anos, a Marília Gabriela entrevistava Fernando Collor de Mello. Não me lembro o que ele era na época, se era candidato a presidente da república, presidente da república ou ex-presidente da república. Não importa, ele mantém a pose sempre. Até quando não era nada, agora é senador, mantinha a mesma empáfia. Por isso, quando a gente vê algum vídeo do Collor, o ideal é que tenha legenda dizendo o que ele é. Melhor do que isso é não ver nada do Collor. Não perdemos nada com isso. Mas, para ilustrar o tema da barata, e não para lustrar a barata, que parece recém-envernizada, tenho que falar delle, com dois eles, como gosta de frisar.

Marilia Gabriela vendo que o cara não baixava a crista, tinha resposta para tudo, aproveitava para se enaltecer, e isso ele faz até quando está por baixo, tirava onda de valente e de destemido, perguntou do que ele tinha medo.  É o tipo de pergunta inócua. É claro que ele respondeu que não tinha medo de nada. Ela insistiu e perguntou se nem de barata ele tinha medo. Ele afirmou que não. Disse que tenho inveja de quem não tem medo de barata, mas aquele cara não me convenceu.

Aliás, não sei o porquê as pessoas escondem que tem medo de alguma coisa, ou de algumas. Não tenho medo de quase nada, talvez até de nada, mas de barata eu tenho. Até finjo que não ligo, se estiver com pessoas de pouca intimidade ou em lugar público, com gente que não conheço. Disfarço, mas não abro a guarda. Pode ser até de noite, mas de longe enxergo aquela coisa se mexendo. Se estiver quietinha, poso até confundir com um pinhão, mas pinhão só dá no inverno, e nessa estação a barata some. Por isso, pinhão e barata nunca vão se cruzar. Então, se estiver no verão, não tem erro. É barata!

Uma vez estava aguardando um amigo para almoçar no extinto Porcão Rio’s. Enquanto bebia uma caipirinha na varanda, na mesa ao lado o apresentador Ratinho dava entrevista a umas jornalistas bastante bonitas. Escutei quando uma delas perguntou do que ele tinha medo. Não entendo que obsessão as entrevistadoras têm por essa pergunta. Vaidoso que só ele, aquela figura um tanto grotesca deu um tapa na mesa e disse que não tinha medo de nada. Por sorte não tinha copos na mesa. Era uma entrevista a seco. De repente, fez cara de quem acabou de se lembrar de alguma coisa e disse que tinha, sim, uma coisa de que tinha medo. De fantasma. Aí, com aquela voz insuportável que não sei como atraia tanta audiência, repetiu algumas vezes que de fantasma ele tem medo. Mas não apenas repetia. Fazia gestos para demonstrar o que era um fantasma. Só faltou desaparecer, o que não seria de todo ruim. Pensei comigo que ele é um fanfarrão, daqueles que quem não conhece compra e paga caro. Dizer que tem medo do que não existe é fácil. Quero ver dizer que tem medo de barata. É preciso ter coragem para ter medo de barata. E isso eu tenho.

Não sei se por causa desse episódio do Ratinho, passei a pensar que não gostaria de me deparar com um fantasma, mas dizem que eles não aparecem para a gente. Então como podemos ter medo dele? Acho que vou perguntar para o Ratinho. Pelo sim pelo não, deixei o fantasma como segundo na lista de medos, caso algum resolvesse me assombrar. E o dia chegou, ou melhor, à noite, que é o horário tanto deles quanto das baratas. Estava sozinho em casa e apareceu uma barata no banheiro. Até aí, fácil. Bastava não tomar banho até a Bel voltar. Ela não tem medo, mas estava fora do país e só voltaria em uma semana.  Até uns três dias dá para disfarçar com perfume. Mais do que isso, só embalsamando.  E tem outra coisa, nem só para banho serve o banheiro. Além disso, ela podia querer conhecer o resto da casa, igual visita de pobre.

Corri contra o tempo, para achar o veneno para baratas, que as pessoas chamam de remédio de barata. Nunca ia ter remédio de barata em casa. Se ficarem doentes não dou uma aspirina. E nem pensar que eu vá fazer uma canja. Por mim, pode morrer que nem no velório eu vou.

Corri para pegar o veneno porque essas danadas têm percepção. Quando a gente sai correndo, elas sabem que não é para trazer comida ou bebida. Por isso, muitas vezes a gente volta e não encontra mais ninguém. Ninguém, no caso, é ela, a barata.

Encontrei o aerossol e ela estava me esperando. Quer dizer, não sei se estava me esperando, mas não saiu do lugar. Cheguei a pensar que já estava morta, talvez de susto. Quem sabe ela tinha medo de gente? Mas nada que é bom dura para sempre. Quando já estava pensando em como ia me livrar dela, vi as anteninhas se mexendo. Era fingimento da diaba. Foi traída pela antena. Igual em filme, quando a pessoa está escondida e toca o celular. Quem está assistindo fica mais assustado do que o dono do aparelho. Antena deve ser o celular de barata, e o dela não estava no modo silencioso.

Mirei o jato na cara dela. Mentira, mirei na direção dela porque não teria coragem de encarar uma barata. Ela é terrivelmente feia. Se não encaro gente feia, o que dirá encarar uma barata feia. Ela ficou encharcada de inseticida, com uma espuma branca cobrindo o corpo. Parecia que tinha saído da Jacuzzi e esquecera o roupão no quarto.  Falei da Jacuzzi só para parecer bacana, mas não tenho Jacuzzi. Era box mesmo.

Depois daquela coreografia que barata faz quando vai morrer. Deita-se de costas, mexe as perninhas, nem sei quantas, mas parece que são umas dez. Abre e fecha as asas. Parece que está fazendo checklist em avião. Maneja os flaps, o leme, enfim, tudo que não pode dar problema no voo. Aliás, se tem uma coisa pior do que  barata é  barata voadora, mas a minha (olha a intimidade) era terrestre mesmo. Vendo que em breve já não estaria mais em nosso mundo, tratei de buscar pá e vassoura para o funeral. Quando volto, vi que meu maior medo havia sumido, dando lugar ao segundo maior medo. O fantasma.

Não pode ser. Em uma mesma noite, encarar uma barata e um fantasma de barata. Se viva não dou conta de enfrentar, imagine, então, desencarnada. Não fazia a menor noção de onde podia estar escondida. Chamar um padre para exorcizar? Não viria. Ligar a TV na Record e pedir ao pastor de plantão que tirasse aquele encosto? Acho que só indo no culto. Sem dinheiro eles não têm boa vontade. Ou melhor, não tem nem vontade.

Nunca me imaginei pedindo para encontrar uma barata, mas, naquela noite, tudo o que eu queria é que ela voltasse, nem que fosse para morrer de novo, só que agora eu não sairia de perto. Ia ficar igual serial killer, que fica perto da vítima esperando para ser preso e ganhar notoriedade.

Ela não voltou e eu não dormi. Passei a noite assistindo filme, de luz acesa e olhando ao redor. Nem me lembro o que assisti. Tanto podia ter sido A Paixão de Cristo quanto O Jumento Gozador. Não prestei atenção mesmo.

A manhã trouxe o sol e as olheiras. Me arrependi de pedir à faxineira que não viesse enquanto estivesse sozinho em casa. Quis aproveitar um pouco de privacidade e agora não sossego enquanto não achar aquela praga. Deixei uma lanterna acesa no escuro para ela achar que é a tal luz que os mortos devem seguir, quando ainda não se deram conta de que o jogo acabou.

Relaxo. Vou para a rua, me sento em um café bastante charmoso, onde todos me conhecem. Faço meu pedido, despejo o cansaço de uma noite assombrada na poltrona que me abraça. Abusado, boto os pés na mesa de centro e levo um susto enorme quando a atendente grita que há uma barata esmagada na sola do meu tênis.


Rio de Janeiro/RJ, 12 de janeiro de 2021 




segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Pandemonia

 

E do nada começa inesperada quarentena. Sem aviso, sem planejamento, sem preparação daquelas que a gente imagina ou fica sabendo através de histórias de aventureiros. Fico pensando como deve estar passando Amir Klink, acostumado a fazer viagens insólitas, atravessando o oceano em barco a remo ou encalhado por mais de um ano nas geleiras antárticas. Para aqueles programas de quem já está com a vida ganha, que ele transforma em fonte de renda, tudo é cuidado em detalhes, o que vai comer, o quanto estocará de mantimentos e o que levará para passar o tempo.

Em casa, não preciso de nada disso. O mercado entrega em domicílio e tenho coisas para fazer por anos, sempre adiadas por falta de tempo, mas agora isso não é mais desculpa. Tempo é o que mais tenho. A diferença é que fui pego de surpresa. Não pensava em me confinar, e só o fiz por insistência da Bel, que temia por minha saúde. Dizia que pertenço ao grupo de risco, que a cada dia recebe mais integrantes, bastando estar vivo para se tornar vítima em potencial do vírus.

Como não esperava que o confinamento fosse durar tanto tempo, botei o computador na mochila, peguei os processos em andamento, e, no meio da tarde, peguei o rumo de casa. Entro no metrô estranhamente vazio e penso em mudar meus horários, para fugir do desconforto que encaro toda noite. Hoje já nem sei como as coisas funcionarão quando isso acabar, e dependendo de como acabar. Não espero mais nada. Deixo a vida correr e procuro não pensar muito nisso.

Sempre brinquei que gostaria de receber pena de prisão domiciliar para aproveitar tudo o que tenho em casa e não aproveito. Dos inúmeros livros que ainda não li ao livro que não escrevi, dos filmes que quero assistir às coleções que pedem por organização. Receitas que não experimentei, meditação, gravação de vídeos, enfim, um bocado de coisas que acreditava dependerem apenas de tempo.

A mulher sugere que eu faça um diário da quarentena. Virginiano incorrigível, não comecei porque quero detalhar tudo o que ocorreu desde o primeiro dia, mas não tenho como me lembrar dos detalhes e não consigo começar do meio. Comigo é assim: ou faço perfeito ou não faço nada, e a segunda opção está ganhando de lavada no confinamento.

Preciso de rotina, que é o que sempre reclamei de ter quando era obrigado, mas, agora, dono do meu nariz, fico mais perdido do que brasileiro quando assiste pronunciamento do presidente.

Estabeleço o roteiro do que vou fazer no dia seguinte, porque planejar e fazer no mesmo dia é desperdício de atividades, afinal não sei quanto tempo ficarei trancafiado dentro de casa. Se gastar todas as ideias hoje não sei o que vou fazer amanhã.

Acordo relativamente cedo, mesmo que seja para dormir depois, faço café e disputo com as cadelas quem tem mais cara de tédio. Acho que elas ganham, porque o objetivo delas depende de mim: querem passear na rua. Mesmo antes eu não tinha ânimo para isso, imagina então agora, que ganhei álibi oficial para não sair de casa. Uma delas é mais inteligente e aponta para a foto do presidente no jornal aberto para que elas façam cocô, na esperança de que eu ache tudo isso um complô dos governadores com a China. Como não arredo da minha decisão, ela caga na cabeça do capitão, engordando os índices de rejeição.

Olho para a estante e percebo que os livros há tempos ultrapassaram os lugares nas prateleiras, empilhados como presos no Brasil. Ao menos não pedem comida, não reclamam do calor e não curram os mais fraquinhos, até porque não devo ter mais nenhum livro fraquinho. O do Diogo Mainardi, que ganhei de inimigo oculto, foi dado para o livreiro da calçada. Por remorso, sempre que vejo o exemplar a cada dia mais desbotado de sol, compro qualquer um outro para que não fique chateado comigo, o que seria injusto, porque não fiquei aborrecido com quem me deu aquela chatice.

Penso que dar ordem a este caos pode ser uma ocupação gratificante. Certamente encontrarei livros repetidos. Rapidamente vejo três exemplares de Um Ano na Provence, de Peter Mayle, perfilados como trigêmeos de classe média, usando roupas idênticas e com postura de abestados.

Assim que acabar de ler a pilha que está na cabeceira da cama me animo e cuido disso, o que deve demorar, já que Bel está infiltrando livros no meio dos que escolhi. Aqui em casa impera o inverso da censura: ao invés de retirar, são incluídos novos livros. Então me vejo agora às voltas com 21 Lições para o Século 21, esperançoso que o século siga adiante. Ontem li a entrevista com Harari, o autor, e parece que ele também está certo disso.

Há anos não assisto televisão, não sei se parei antes que ela me deixasse burro muito burro demais, mas me sinto aliviado por não entender nada do que se refira ao BBB, que penso ter regras mais difíceis do que jogo do bicho. Também fico perdido quando determinada reportagem no Fantástico vira assunto na segunda-feira. Recentemente, um médico que eu julgava ser unanimidade nacional, estava sendo escrachado por ter abraçado um travesti. Soube depois que havia cometido um crime bárbaro (o travesti, não o médico).

Só por isso já seria motivo mais do que suficiente para não readquirir um hábito há tanto abandonado. Penso que seria pior do que voltar a fumar. Pelo som que vem dos apartamentos vizinhos, devo ser o único a não preencher o tempo com a televisão. Aliás, acho que ela mais joga fora do que ocupa o tempo.  

Não deixo o aparelho de TV desligado. Assisto filmes, clipes e algumas reportagens estrangeiras que estejam disponíveis. Gosto da RAI italiana, mas não tenho este canal, o que não faz diferença porque não entendo nada de italiano. Vejo, vez ou outra, pela internet. O idioma italiano é chamado de língua dos anjos, por causa da beleza e da sonoridade. Do jeito que as coisas andam por lá, acho que os anjos têm muito a fazer.

Uma vez me perguntaram como eu me informava, já que não assisto telejornais. Respondi que era exatamente por isso que me considero informado. Com a insistência, falei que me atualizava pelo Intercept Brasil, pela TV 247, pelo Público, jornal de Portugal, pela Folha e mais alguns informativos. Senti que, por precaução, afastaram as crianças de mim. Vai que eu estivesse com fome.

Para não perder a referência, aconselham que mantenhamos o ritmo de antes da quarentena, o que acho difícil porque trabalhava dez horas por dia no escritório, para onde me deslocava de metrô, e almoçava em restaurantes do centro da cidade. Felizmente continuo a trabalhar e me visto para isso. É claro que não uso terno em casa, nem mesmo para videoconferências. Iria parecer artificial e pedante. Vivemos tempos de calamidade pública e há todo um protocolo para o  momento. Às vezes é complicado redigir peças jurídicas com um arfar insistente sob a cadeira. É a cadela que ainda não passeou, e se depender de mim não vai passear hora nenhuma, mesmo tendo cagado na foto do presidente. Não adianta me agradar. Não gosto de insistência.

Devo estar chato mesmo. Não me sinto um prisioneiro, porque posso sair se quiser. A diferença é que não quero. Olho pela janela e vejo perambulando pessoas de certa idade, melhor seria dizer de incerta idade, porque alguns não tem mais nem a plaqueta com a data da inauguração. Não sei o que velho gosta de fazer na rua, mas sei que garantem a necessidade de sair todos os dias, por isso saem do supermercado com o mínimo de coisas, para que acabe logo. Na farmácia perguntam pela embalagem que contenha o menor número de comprimidos. Fazer estoque significa cumprir a quarentena.

Velho adora dizer que já viveu demais, mas, quando a coisa aperta, procura o médico e o padre, para não deixar nenhum dos lados desguarnecidos. Este ano a Semana Santa não teve procissão e nem missa de Páscoa. Não duvido que alguns tenham pedido ao padre um atestado para apresentar no além.

Passei uns dias agoniado, com a internação do primeiro ministro inglês na UTI. Se ele morresse, com o que há de mais avançado ao seu dispor, ia acreditar que era uma questão de tempo para seguirmos o mesmo rumo. Não tenho simpatia por nenhum líder loiro de cabelo arrepiado que fala inglês. Só conheço dois, mas já é o bastante.

Cuidar do espírito estou conseguindo, mesmo não tendo convicção de que ele exista, mas do físico já é mais complicado. Comecei a praticar Qigong, uma suave sequência de movimentos criada na China, mas uma das cadelas, a menos inteligente     , cismou que é uma ameaça e me estraçalhou com selvagens dentadas.

Enfim, vou levando essa pandemia do jeito que der para levar. Um dia acaba, bem ou mal, mas acaba. Dizem que a humanidade será muito melhor depois disso tudo. Parece confortador, mas será que não falaram a mesma coisa para os dinossauros?


Rio de Janeiro/RJ, 14 de abril de 2020  (inscrita no concurso do 247)