domingo, 10 de janeiro de 2021

Bira


Hoje recebo a notícia que ninguém gosta de receber. Um amigo se vai, pelos braços de uma doença infame que alguns chamam de gripezinha e que só assusta maricas. Meu amigo Ubiratan, o Bira, não estava gripado e não estava assustado. Simplesmente adoeceu e morreu. É difícil dizer que em país mais evoluido teria sobrevivido. Pode ser que não, mas, com certeza, seu drama teria sido encarado com seriedade. Aqui, a doença é motivo de chacota do presidente, a ponto de dispensar ministros da saúde que possuam conhecimento médico para empossar um general que nem ao menos faz jus à habilidade de estrategista que diziam ter. Não encomendamos vacinas nem temos seringas e agulhas. Se isso é ser estrategista, levantemos as mão aos céus por não nos metermos em guerra. Já pensou? O grande general, com enorme vivência em pintar meio fio e tronco de árvores, não ter cal suficiente para enfeitar as trincheiras. Seria um vexame.


Bira se foi, e, por mais que há tempos não estivesse com ele pessoalmente, não posso me considerar tão afastado. Tínhamos o mesmo amor pela escrita. Enviava-lhe meus textos e ele me cedia, gentilmente, os originais de seus livros, que chegou a publicar pela Amazon. A Gincana de Jó e O Tempo do Ceifador compunham a trilogia de Barra do Norte, que não chegou a concluir. Barra do Norte era a cidade imaginária, inspirada em sua Barra do Pirai. Me diveria com suas letras, como me divertia muito com sua convivência, no tempo em que trabalhamos juntos.


Éramos bancários e, no horário de almoço, batíamos perna no shopping center vizinho à agência. De camisa social e gravata, postávamo-nos diante das lojas e os clientes, achendo que ali trabalhávamos, peruntavam o preço de algum produto exposto na vitrine. Respondíamos com valores absurdos. Não me recordo da moeda da época, pois nosso país é pródigo em fazer reforma monetária, mas, para exemplo, posso citar o caso de uma agenda, tarzendo para valores atuais.


Uma mulher muito jovem, aparentando pouco mais de dezoito anos, perguntou o preço de uma agenda, ao que respondemos que custava trezentos reais. Como se tratava de uma agenda muito simples, é natural que a candidata a freguesa se assustasse e nos questionasse se não estava absurdamente cara. Com a maior cara de pau, que ele conseguia fazer com mais maestria do que eu, respondíamos que, infelizmente, aquela papelaria não era para duros. Se ela não tinha dinheiro, que procurasse outro lugar, quem sabe, o mercado popular, nome bonito para o camelódromo de Volta Redonda.


Quando estávamos mais inspirados, íamos para as Lojas Americanas e circulávamos entre as gôndolas (prateleiras, para que ninguém pense que íamos para Veneza durante o horário de almoço). Por sorte, sempre aparecia alguém, com a fisionomia mais cândida que já havíamos visto, e perguntava o preço de um liquidificador. Nunca entendi essa tara por liquidificadores até o meu começar a espirrar vitamina para todos os lados. Pois bem, assim que a pobre coitada  (quase sempre era mulher, o que para nós, covardes, trazia um alívio e diminuia a chance de voltarmos para a agência com o nariz sangrando) acabava de perguntar, respondíamos de maneira bastante inusual para um vendedor. Aliás, nas Lojas Americanas, só quem usava gravata eram os gerentes, por isso achavam que éramos autoridades ali. Sendo assim, os clientes achavam que teriam respostas mais qualificadas, portanto não entendiam nada quando respondíamos, sem alterar nossa fisionomia: “Se a senhora que está interessada não sabe o preço, por que nós haveríamos de saber?” É claro que não ouvíamos coisas mais agradáveis, mas era esse o objetivo da farsa.


Bira tinha o humor politicamente incorreto, talvez por isso gostasse tanto dele. Certa vez passamos diante de uma loja no shopping, que estava fechada, com diversas fileiras de cadeiras encostadas umas na outras, sem espaço para as pernas, o que era normal. Já que estava apenas armazenadas. Perguntei ao Bira o que estavam projetando fazer ali, e ele,  de imediato, respondeu que era um cinema que a ferrovia estava fazendo para os mutilados por atropelamento pelos trens.


Bira não tinha compromisso com a opinião dos outros, apenas com o humor. Espírita praticante, me dizia que o outro lado não era tão condescendente com as pessoas que levavam uma existência pesada. Não que fossem condenados à danação eterna, mas passariam por um trote de fazer inveja às mais sádicas escolas militares.


Tenho muito a falar do Bira, mas não hoje. Aliás, não sei de onde tirei forças para trazer tantas recordações do querido amigo. Agnóstico, não sei se um dia o reencontrarei, mas tenho certeza de que estará comigo enquanto eu estiver neste plano. O que virá depois, só saberemos quando vier o depois.


Adeus Bira, muito ainda tenho a falar de você. Quem sabe quando elabora melhor esta perda.



Rio de Janeiro/RJ, 10 de janeiro de 2021


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