domingo, 20 de setembro de 2020

Tempo


Não tenho levado relógio para a mesa de cabeceira. Quero me dar ao direito de acordar quando quiser, seguindo  a vontade do corpo e a avidez da alma. Retomo o hábito de me levantar cedo e só sei da hora porque o relógio da cozinha, presente que muito admirei e ainda me encanta, tem um canto de pássaro a cada hora cheia. Às seis, canta a seriema, e ela é mesmo bicho da manhã. Em Visconde de Mauá, ou melhor, no distrito de Maringá, fiquei em uma pousada e ouvia a seriema, com seu canto esquisito, tão logo o sol trazia seus primeiros rasgos de luz. Então, quando ouço o relógio, quase sempre já estou acordado, naquele meio termo de não saber se continuo na cama ou encaro de uma vez a beleza das manhãs. E todas são belas. Tempo é bonito.

De uns tempos para cá tenho a companhia de um ser de luz que não sai de perto, como se sua existência tivesse sentido a partir do momento em que abro os olhos. Rihanna é uma cadela preta e brilhante, com porte de adulta e cabeça de criança. Não me chateia, não me dá o desprazer de passar a língua quente e úmida  em minhas mãos. Quando muito, encosta seu focinho gelado e provoca uma lembrança sem graça, dos tempos de molecagem, quando os amigos encostavam latas de cerveja gelada nas costas de quem estivesse distraído. Tempo é lembrança.

Com a primeira caneca de café ainda cheia, toca o canto das sete horas. Agora é o sabiá verdadeiro, como se os demais fossem falsos. Há um outro sabiá, das nove horas, que se chama sabiá-laranjeira. Agora começo a entender porque o oposto de verdadeiro é laranja. Mesmo me orientando pelos cantos dos pássaros e mesmo com o relógio do celular, ainda sinto falta de um relógio na parede da sala. Não tenho pressa e, como é cedo, terei tempo para fazer muita coisa durante o dia, mas gostaria de ter a companhia de um relógio bem tradicional, com mostrador branco e ponteiros pretos, com seu ponteiro de segundos girando em busca de mais um minuto, que por sua vez buscará mais uma hora. Tempo é clássico.

Aprendi a ler as horas, ou ver as horas, sei lá, na escola. A professora, que naquele tempo a gente não chamava de tia, desenhou um relógio no quadro, só com os ponteiros de horas e minutos. Acho que o ponteiro de segundos viria em séries mais adiantadas, ou o mundo se encarregaria de nos ensinar. Então ela começou a explicação dizendo dos movimentos do ponteiro de minutos, que andava mais depressa do que o das horas. Nunca me esqueci do exemplo utilizado: o ponteiro das horas seria uma lambreta e o dos minutos um avião. Para quem não conhece, lambreta é um veículo de duas rodas da marca italiana Lambretta. Por muito tempo, o nome lambreta serviu para qualquer marca, com exceção da Vespa, que era outra marca de uma motoneta mais bunduda. Sempre achei desproporcional a comparação entre o avião e a lambreta, mas foi assim que aprendi. Tempo é aprendizado.

Saber ver as horas e não ter relógio era o mesmo que saber ler e não ter livros ou revistas. Se era para não ter relógio, não precisava aprender a ver as horas, já que ia perguntar para quem tinha. Anos depois, entendi que não era bem assim. Uma vez, na rodoviária, perguntei as horas ao motorista que estava do lado de fora do ônibus. O sujeito fez uma cara horrorosa e apontou para o relógio pendurado no teto. Se não tivesse passado pela aula da lambreta e do avião, talvez perdesse o ônibus. Tempo é viagem.

Ganhei meu primeiro relógio, de uma marca que nunca havia ouvido falar – Lanco, mas também nunca tinha ouvido falar de marca nenhuma. Criança não se interessa por essas coisas. Basta o relógio e pronto. Me achei homem feito com o relógio, até que um dia o perdi, sem ter a mínima noção de como isso foi acontecer. A pulseira deve ter arrebentado, porque não tirava ele do braço. Acho que foi minha primeira perda. Depois vieram os cachorros atropelados, passarinhos que morreram sem motivo aparente, avós, pai, filha, enfim, todas aquelas coisas preciosas que a vida nos dá e depois tira. Tempo é saudade.

Rio. 01 de setembro de 2020