domingo, 24 de novembro de 2019

Viúva


Diz o senso comum que ex é para sempre, seja ex-mulher ou ex-marido, o que não deixa de ser verdade. Mesmo que tenha morrido, ainda na lembrança ou em citações a figura que um dia fez parte de sua vida existirá, mesmo contra sua vontade.

Um amigo me dizia que casamento só termina sem trauma com a morte. O dele terminou de forma extremamente  traumática, e, logo depois, ele morreu. Poderia ter evitado o sofrimento se tivesse morrido antes ou aguentado um pouco mais.

Há casos em que nem a morte dissolve o vínculo. Quando criança, estranhava que uma ruela em Passa Quatro tivesse o nome de Travessa Viúva Bonanni. Não devia ter mais do que vinte metros de extensão, se muito. Não havia placa de identificação. O nome era pintado na parede da primeira casa, acho que um comércio de ferragens ou coisa parecida.

Nunca entendi o porquê da homenagem ser para a viúva, e não para o morto, como geralmente acontece com as homenagens. Um certo Bonanni, amigo do meu pai, frequentava nossa casa quando a tal travessa já tinha aquele nome. Provavelmente a viúva devia ser sua parente, talvez até mesmo sua mãe. Com a morte dele, alguns carnavais depois, sua mulher poderia ter reivindicado a homenagem, já que se tornou mais uma Viúva Bonanni. Só não sei a minúscula travessa suportaria tantas homenageadas.

Se referir a  alguém pelo estado civil é de um descaso enorme, já que todo mundo tem um. E quando a este se acrescenta o sobrenome, a lembrança vai para o que morreu, pois só recentemente as mulheres passaram a exercer o direito de não incluir o sobrenome do marido.

E não é qualquer estado civil, mas só o de viúva. Não acredito que exista alguma Rua Casada Silva, Avenida Divorciada Neves ou Rodovia Chifruda Souza. Também não se homenageia o viúvo, talvez pelo receio de exaltar alguém que esteja na esbórnia aproveitando a liberdade adquirida. 

No estado do Rio há um posto de pedágio na Rodovia Presidente Dutra chamado de Pedágio Viúva Graça, embora esteja situado no município de Seropédica. A viúva entrou com o nome talvez para evitar o xingamento dos motoristas, já que o luto sempre traz certa reverência.

No Rio existem diversas ruas homenageando viúvas que jamais saberemos o nome. Viúva Dantas, Viúva Ortigão, Viúva Lacerda são alguns dos endereços espalhados pela cidade. Há uma com o nome mais curioso ainda - Rua Viúva Cláudio. Essa nem sobrenome tem. 

Será que parte do IPTU dos imóveis localizados nessas ruas não poderiam ser revertidos como reforço na pensão das viúvas? Bem, a Viúva Bonanni, de Passa Quatro, ia receber uma micharia, mas aí é consequência de onde o marido resolveu esticar as canelas. Se bem que esta idéia não daria certo, pois a maioria destas viúvas, senão todas, já deixaram o papel de coadjuvantes  para se unir aos finados.

Deixar para os descendentes? Só se fossem viúvas de militares, o que é improvável porque morto de farda não precisa de intermediária para ser homenageado. Basta ver a quantidade de ruas com nomes de todas as patentes, de cabos a generais. Soldado tem uma condição diferente, só é homenageado quando ninguém sabe seu nome. Aí ganha até monumento ao soldado desconhecido. 

As viúvas de antigamente preservavam a liturgia do cargo, parafraseando um ex-presidente poeta, e não descuidavam tanto dos trajes quanto do comportamento público. Vestidas de preto, não importa o tempo, relaxavam com as medidas - magras poderiam ser confundidas com bruxas - frequentavam missas, preferencialmente diárias, e andavam em bando, como os melros.

A visita de uma viúva era sempre constrangedora, pelo menos para as crianças, previamente aconselhadas, sob pena de cascudos, a não fazer perguntas indiscretas, principalmente se fosse viúva recente. Me segurei muito para não perguntar para minhas avós se não tinham medo dos maridos puxarem a perna delas durante a noite e outras bobagens inocentes. Para viúvas velhas não havia curiosidade sobre temas mais íntimos, e nem as crianças tinham ainda essa maldade.

Hoje, as viúvas, ainda em bom estado de conservação e em condições de uso, despertam outros interesses, e muitas sabem disso e se aproveitam da situação. Como não usam roupa de luto, precisam se identificar e, dependendo do tom que usam, podem sinalizar se ainda apostam na vida.

O mínimo de investigação pode esclarecer se a viúva é mesmo azarada como diz, ou se há algo de estranho em ter perdido tantos maridos assim. No mundo inteiro, incluindo casos escabrosos no Brasil, há profusão de mulheres que matam seus maridos pelos motivos mais diversos, não necessariamente por dinheiro. As chamadas viúvas negras agem até em busca de emoção, se bem que é esquisito chamar de emocionante o envenenamento de um velho com remédio contra berne ou misturando formicida na sopa.

A viúva negra virou apelido de uma moto que matava muito e, mais recentemente, se transformou em título de filme com Scarlett Johansson no papel principal. Há viúvas e viúvas.

Em tempos de politicamente correto, o que acho correto, devo explicar que não estou a fazer gozação com as viúvas. Minha mãe é uma delas e a tenho como modelo de muito do que sou. Mesmo com toda a admiração pelas viúvas, desejo intensamente que a Bel não se torne uma delas.

Rio, novembro de 2019