sexta-feira, 5 de junho de 2020

Passado


Recebo uma mensagem no whatsapp convidando para participar do encontro de ex-alunos de um colégio que estudei há anos, muitos anos. Não me lembrava do ex-colega que tão gentilmente me convidou e percebi que isso o deixou um pouco chateado, afinal ele se lembrava de mim, senão nem me convidaria.

É claro que se houvesse foto em seu perfil talvez ficasse mais fácil, mas ele me disse apenas seu primeiro nome, bastante comum por sinal. Na minha vida escolar devo ter esbarrado com pelo menos duas centenas deles.

Não foi por não o reconhecer que declinei do convite, mas pelo evento mesmo. Esses encontros de pessoas que não se veem há anos são naturalmente desinteressantes, a não ser se encarados do ponto de vista arqueológico. Além da sensação de tentar descobrir quem se esconde por detrás daquelas rugas, pouca diversão é reservada aos participantes.

Gostosonas que sequer nos olhavam na adolescência, já que de nós nada podiam esperar, agora se insinuam entaladas em apertadas calças com numeração defasada. Decerto querem saber se a atração permanece viva. Não é hora de desforra e fazemos que sim, não estamos em condições de fazer escolhas.

O passado aumenta como bolo no forno. Lembro da casa onde vivi por muitos anos e em minha memória a cada dia parecia que era maior. Se não tivesse visto uma foto recente, ia acabar dizendo que morei em uma fazenda. As histórias do passado também ficam maiores à medida em que são contadas, o que as torna cada vez mais distante da verdade.

Fosse apenas isso, não seria de todo ruim, bastava aplicar um redutor, mas há o mentiroso também.  Como não estávamos lá para conferir, a pessoa inventa um feito notável que, estranhamente, não deixou uma marca sequer. Muitas vezes as testemunhas citadas não estão mais por aqui e evocar os mortos costuma dar certa credibilidade, talvez por respeito.

E quando o mentiroso conta com nossa falta de memória e nos inclui em suas histórias inventadas? Esse é o pior de todos, porque você tem certeza de que não aconteceu nada daquilo que ele está contando e ainda tem que ficar respondendo a mesma pergunta – você não se lembra? Ah, não é possível! Você jura que não se lembra? Ele não apenas te pede para confirmar, mas põe em dúvida sua lucidez na frente dos outros. Para não parecer que estamos caducando, acabamos por concordar.

O Guedes era um amigo que já nos deixou, mas nem por isso vou contar mentira o incluindo na história. Gozador como ele só, olhava de soslaio para nós quando alguém vinha contar que foi alguma coisa ou que teve alguma coisa de muita importância. “Foi” ou “teve” eram verbos que o Guedes dizia não servirem para nada.  Verbos usados no tempo passado demonstram que não existem mais no presente. Quem é ou tem não diz que foi ou que teve.

Como a vida não é feita apenas de momentos alegres, as desgraças também são lembradas, com dramatização digna de prêmio Molière.  Os mortos são citados com qualidades que nunca mostraram em vida, pelo menos não na intensidade que agora são contadas. E parece que antes de partir se encontraram escondidos com várias pessoas, sem que umas soubessem das outras. O narrador sempre salienta que foi o último a estar com o finado, como se isso o fizesse alguém especial.  Parece que o objetivo de quem participa desses encontros é o de se mostrar especial.  

Como não dou muito valor a glórias do passado, principalmente as inventadas, e também não gosto de saber de desgraças acontecidas, me tornei alguém que jamais deveria ser convidado para esses encontros.

Mesmo não indo, me adicionaram no grupo de whatsapp e vi que fiz bem em não ter dado as caras por lá. Não reconheceria nenhum deles. Cheguei até a pensar que estava em grupo errado ou trocaram as fotos. Envelhecer todo mundo envelhece, mas ali parece que morreram e continuaram a se encontrar, talvez até mesmo no cemitério, pois o cenário era escuro e as mesas de cimento pareciam túmulos.

Se não estavam mortos, brevemente estarão, a julgar pelas cervejas que bebiam e pelos nacos de carne engordurada que exibiam. Em tempos de cervejas artesanais, que não necessariamente são maravilhosas, é inadmissível exibir garrafas de um litro de marcas populares e mais apropriadas a uma roda de samba, onde as pessoas devem ter fígado de lata. Sambista não é como atleta, que morre aos sessenta anos.  Monarco, ídolo da Portela, que já passou há tempos dos oitenta, todo ano comemora seu aniversário com uma semana de festa, e com certeza sem falar do passado.

Outra coisa que me  intriga é como os encontros do passado nivelam as idades, que em dado momento parece que são as mesmas. Na adolescência é impensável uma pessoa de treze anos ter algo em comum com uma de dezenove. Pertenciam a turmas diferentes. Muitos anos depois, entretanto, confraternizam como  se tivessem compartilhado de todos os momentos. Penso que isso acontece quando o tempo começa a ser contado de forma decrescente. Agora é certo de que irão para o mesmo caminho, e isso os faz parceiros.

Rio, junho de 2020