quinta-feira, 25 de abril de 2019

Porco


Se alguém detesta o nazismo, mais do que eu, é o porco. Os nazistas queriam exterminar os judeus, e os judeus não comem porco. Se acabassem com os judeus, não haveria mais quem aliviasse a barra do porco, e qualquer humano seria uma ameaça em potencial.

Porco não anda solto na rua. Se andasse, como os cães, certamente iria buscar refúgio em alguma sinagoga. Teria que procurar comida em outro lugar, porque judeu não livra o porco da panela por pena, mas porque acha impuro. Além disso, judeu não é de sair distribuindo suas coisas por aí, nem mesmo o que sobra, até porque judeu não deixa sobrar nada.

A pressa fez o porco escapar de virar o prato principal em cerimônias judaicas. Tivesse o porco a paciência de ruminar, como os bois e os cavalos, certamente seria disputado a tapas em um bar mitzvah, a cerimônia que marca a entrada do judeu na maturidade, e que, neste caso, marcaria a entrada do porco na eternidade.

A Lei de Moisés é muito clara quando diz que só podem ser comidos os animais que tenham o casco fendido (dividido por uma fenda) e que ruminem. Tem que ter as duas características, senão não presta para comer. O coelho rumina mas não tem o casco fendido, então se livrou. O porco tem o casco partido em duas unhas, então tem casco fendido, mas não rumina, ou se ruminava deixou de fazer por questão de sobrevivência.

Ruminar é mesmo uma coisa esquisita. O boi come uma quantidade enorme de capim e manda para um compartimento no bucho que faz as vezes de despensa. Depois, com aquela calma que só os bovinos têm, traz de volta o capim para a boca e mastiga com a lentidão de um policial fazendo boletim de ocorrência.

Se o porco é ruminante, disfarça muito bem, porque devora o que vê pela frente  quase sem mastigar. O peido de um porco é tão  forte que dá pra desconfiar que ele não fez direito a digestão. Talvez tivesse que ruminar. A sorte dele é que as universidades de Israel têm coisas mais importantes para pesquisar, senão já teriam estudado o aparelho digestivo do porco e descoberto que ele é ruminante.

O porco só não contava que a religião deixasse uma brecha. Comer porco continua proibido, mas não precisa impedir quem quer comer. Na vizinhança, há uma loja de judeus onde aos sábados é montada uma tenda na calçada para vender um sanduíche de porco, que já está famoso.

A determinação de Jeovah não foi descumprida, porque o porco não está sendo comido pelos judeus. É preparado e manuseado por goys (não judeus). O porco não entra na loja, mas o dinheiro da venda sim, e a religião não fala nada sobre isso.

Guardo um número da revista Seleções do mês e ano do meu nascimento, que  encontrei na casa da minha avó. Tem um artigo sobre o porco que quebra alguns tabus, inclusive o de que ele gosta de sujeira e lama. Porco é calorento, como todo gordo, e, como não existe piscina em chiqueiro, mergulha na água para se refrescar. Só que a água forma poças no chão de terra, e por isso o porco fica chafurdando na lama. Não é por farra.

A matéria fala também que comer porco preserva a moral. Diz que a carne é rica em vitamina B-12, e essa substância fortalece os nervos. Nunca entendi essa ligação de nervos com moral, mas o porco, com certeza, deve achar isso imoral.  

Na França ele já desbanca o cachorro na extração de trufas. Aquele nariz de tomada parece mais sensível do que o dos cães. Cachorro enfia o focinho na bunda dos outros cachorros e isso deve afetar o olfato.

O porco queria apenas uma chance de provar que pode ser mais útil como animal doméstico do que o cão.  A começar pelo silêncio. Porco não late e o grunhido não incomoda a vizinhança. Porco não pula no dono quando ele chega em casa. Porco não derruba o lixo, come o lixo. Porco não se esfrega nas pernas das visitas.

Cachorro quando morre é uma tragédia, principalmente entre as crianças, e ainda dá um trabalhão para livrar do corpo. Com o porco não tem esse problema. Dependendo da causa da morte, um atropelamento, por exemplo, a coisa se resolve com uma feijoada.

Os três porquinhos são heróis há gerações, e um deles tem o meu nome. Não sei qual mãe imitou a outra. Mesmo torcendo pelo porco, crianças depois crescem e comem linguiça, presunto e torresmo. Acho que a torcida não era pelo porco, mas contra o lobo. Coisas de criança.

Falam que em Cuba se come muita lagosta (devem ter enjoado de comer crianças), mas estive lé e só comi carne de porco. Até pensei em comer lagosta, mas os turistas devem ter comido todas. Ainda bem que sobrou porco.

Em Portugal é a mesma coisa. A gente atravessa o oceano pensando no bacalhau, mas chegando lá só quer saber do Leitão a Bairrada, que tem mais prestígio do que o Cristiano Ronaldo, que se bandeou para o Real Madrid e daqui a pouco não sabe nem mais falar português.

Português gosta tanto de porco que quem não comia era visto com desconfiança. Na verdade, os judeus não comiam e ainda não comem, mas isso podia fazer com que fossem descobertos, e volta e meia judeu é perseguido por algo que não fizeram. Pelo sim pelo não, eles cozinhavam frango e enchiam de alho até não se sentir mais o sabor da carne. Para todos os efeitos, aquilo era porco. O nome do prato é alheira, e hoje faz um sucesso danado.

Em Minas as pessoas nascem comendo carne de porco. Não há uma roça, por mais humilde, que não tenha um porco de engorda. Em Passa Quatro vi um menino dando de mamadeira a um porquinho no colo. Lá há uma simbiose entre o porco e o homem. O homem cuida do porco enquanto este está vivo, e, já em outro plano, o porco retribui e passa a cuidar do homem, mais precisamente do estômago do homem.

Há alguns anos, participei de um seminário sobre saúde natural com o médico Márcio Bomtempo, de Minas Gerais. Surpreendentemente, ouvi alguém de lá criticar o costume de comer porco. Além dos supostos malefícios ao organismo, disse que quem come carne de porco fica com feições de porco, assim como se dá com quem come outros animais.

Realmente, já vi muita gente com cara de porco, mas poucos com cara de boi ou de frango, que são bastante comidos. Tem muita gente com cara de cavalo e até de rato, mas quase ninguém come isso. Acho que é conversa dele. Vai ver que tem muito porco com cara de gente.

É estranho que antigas culturas tenham divindades inspiradas em outros animais, como o elefante, o carneiro, a cobra e o boi, mas não há, pelo menos não tenho conhecimento, nehuma divindade com cara de porco. Talvez elas não comessem carne de porco, e aí a teoria do médico pode fazer sentido.

Um dia a humanidade vai fazer justiça ao porco, mesmo mandando ele para a panela. No Rio Grande do Sul, o pessoal gosta tanto de cavalo que bota quadros com eles na parede. Em escritórios luxuosos também tem isso, só que os cavalos tem mais porte e quase sempre estão montados por gente com cara afeminada de casaco vermelho e calça branca.

Mas porco a gente não vê emoldurado. Quando muito, pendurado na cozinha, já em estado de linguiça. Ninguém agrada o porco, ninguém posta carinha de porco nas redes sociais e nem faz campanha de adoção.

Porco só existe para ser usado, ao contrário da barata, que não serve para nada. No entanto, quando alguém não faz nada ou só atrapalha é chamado de espírito de porco. Não seria o caso de, ao menos, mudar o xingamento para espírito de barata?

Não muda as coisas para o porco, e muito menos para a barata, mas já é um começo.


Rio, abril de 2019

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