Se alguém
detesta o nazismo, mais do que eu, é o porco. Os nazistas queriam exterminar os
judeus, e os judeus não comem porco. Se acabassem com os judeus, não haveria
mais quem aliviasse a barra do porco, e qualquer humano seria uma ameaça em
potencial.
Porco
não anda solto na rua. Se andasse, como os cães, certamente iria buscar refúgio
em alguma sinagoga. Teria que procurar comida em outro lugar, porque judeu não
livra o porco da panela por pena, mas porque acha impuro. Além disso, judeu não
é de sair distribuindo suas coisas por aí, nem mesmo o que sobra, até porque
judeu não deixa sobrar nada.
A
pressa fez o porco escapar de virar o prato principal em cerimônias judaicas. Tivesse
o porco a paciência de ruminar, como os bois e os cavalos, certamente seria
disputado a tapas em um bar mitzvah, a cerimônia que marca a entrada do judeu
na maturidade, e que, neste caso, marcaria a entrada do porco na eternidade.
A
Lei de Moisés é muito clara quando diz que só podem ser comidos os animais que
tenham o casco fendido (dividido por uma fenda) e que ruminem. Tem que ter as
duas características, senão não presta para comer. O coelho rumina mas não tem
o casco fendido, então se livrou. O porco tem o casco partido em duas unhas,
então tem casco fendido, mas não rumina, ou se ruminava deixou de fazer por
questão de sobrevivência.
Ruminar
é mesmo uma coisa esquisita. O boi come uma quantidade enorme de capim e manda
para um compartimento no bucho que faz as vezes de despensa. Depois, com aquela
calma que só os bovinos têm, traz de volta o capim para a boca e mastiga com a
lentidão de um policial fazendo boletim de ocorrência.
Se o
porco é ruminante, disfarça muito bem, porque devora o que vê pela frente quase sem mastigar. O peido de um porco é
tão forte que dá pra desconfiar que ele
não fez direito a digestão. Talvez tivesse que ruminar. A sorte dele é que as
universidades de Israel têm coisas mais importantes para pesquisar, senão já
teriam estudado o aparelho digestivo do porco e descoberto que ele é ruminante.
O
porco só não contava que a religião deixasse uma brecha. Comer porco continua
proibido, mas não precisa impedir quem quer comer. Na
vizinhança, há uma loja de judeus onde aos sábados é montada uma tenda na
calçada para vender um sanduíche de porco, que já está famoso.
A
determinação de Jeovah não foi descumprida, porque o porco não está sendo
comido pelos judeus. É preparado e manuseado por goys (não judeus). O porco não
entra na loja, mas o dinheiro da venda sim, e a religião não fala nada sobre
isso.
Guardo
um número da revista Seleções do mês e ano do meu nascimento, que encontrei na casa da minha avó. Tem um artigo
sobre o porco que quebra alguns tabus, inclusive o de que ele gosta de sujeira
e lama. Porco é calorento, como todo gordo, e, como não existe piscina em
chiqueiro, mergulha na água para se refrescar. Só que a água forma poças no
chão de terra, e por isso o porco fica chafurdando na lama. Não é por farra.
A
matéria fala também que comer porco preserva a moral. Diz que a carne é rica em
vitamina B-12, e essa substância fortalece os nervos. Nunca entendi essa
ligação de nervos com moral, mas o porco, com certeza, deve achar isso imoral.
Na França
ele já desbanca o cachorro na extração de trufas. Aquele nariz de tomada parece
mais sensível do que o dos cães. Cachorro enfia o focinho na bunda dos outros
cachorros e isso deve afetar o olfato.
O
porco queria apenas uma chance de provar que pode ser mais útil como animal
doméstico do que o cão. A começar pelo
silêncio. Porco não late e o grunhido não incomoda a vizinhança. Porco não pula
no dono quando ele chega em casa. Porco não derruba o lixo, come o lixo. Porco
não se esfrega nas pernas das visitas.
Cachorro
quando morre é uma tragédia, principalmente entre as crianças, e ainda dá um
trabalhão para livrar do corpo. Com o porco não tem esse problema. Dependendo
da causa da morte, um atropelamento, por exemplo, a coisa se resolve com uma
feijoada.
Os
três porquinhos são heróis há gerações, e um deles tem o meu nome. Não sei qual
mãe imitou a outra. Mesmo torcendo pelo porco, crianças depois crescem e comem
linguiça, presunto e torresmo. Acho que a torcida não era pelo porco, mas
contra o lobo. Coisas de criança.
Falam
que em Cuba se come muita lagosta (devem ter enjoado de comer crianças), mas
estive lé e só comi carne de porco. Até pensei em comer lagosta, mas os
turistas devem ter comido todas. Ainda bem que sobrou porco.
Em
Portugal é a mesma coisa. A gente atravessa o oceano pensando no bacalhau, mas
chegando lá só quer saber do Leitão a Bairrada, que tem mais prestígio do que o
Cristiano Ronaldo, que se bandeou para o Real Madrid e daqui a pouco não sabe
nem mais falar português.
Português
gosta tanto de porco que quem não comia era visto com desconfiança. Na verdade,
os judeus não comiam e ainda não comem, mas isso podia fazer com que fossem
descobertos, e volta e meia judeu é perseguido por algo que não fizeram. Pelo
sim pelo não, eles cozinhavam frango e enchiam de alho até não se sentir mais o
sabor da carne. Para todos os efeitos, aquilo era porco. O nome do prato é
alheira, e hoje faz um sucesso danado.
Em
Minas as pessoas nascem comendo carne de porco. Não há uma roça, por mais
humilde, que não tenha um porco de engorda. Em Passa Quatro vi um menino dando
de mamadeira a um porquinho no colo. Lá há uma simbiose entre o porco e o
homem. O homem cuida do porco enquanto este está vivo, e, já em outro plano, o
porco retribui e passa a cuidar do homem, mais precisamente do estômago do
homem.
Há alguns
anos, participei de um seminário sobre saúde natural com o médico Márcio
Bomtempo, de Minas Gerais. Surpreendentemente, ouvi alguém de lá criticar o
costume de comer porco. Além dos supostos malefícios ao organismo, disse que
quem come carne de porco fica com feições de porco, assim como se dá com quem
come outros animais.
Realmente,
já vi muita gente com cara de porco, mas poucos com cara de boi ou de frango,
que são bastante comidos. Tem muita gente com cara de cavalo e até de rato, mas
quase ninguém come isso. Acho que é conversa dele. Vai ver que tem muito porco com
cara de gente.
É
estranho que antigas culturas tenham divindades inspiradas em outros animais,
como o elefante, o carneiro, a cobra e o boi, mas não há, pelo menos não tenho
conhecimento, nehuma divindade com cara de porco. Talvez elas não comessem
carne de porco, e aí a teoria do médico pode fazer sentido.
Um
dia a humanidade vai fazer justiça ao porco, mesmo mandando ele para a panela.
No Rio Grande do Sul, o pessoal gosta tanto de cavalo que bota quadros com eles
na parede. Em escritórios luxuosos também tem isso, só que os cavalos tem mais
porte e quase sempre estão montados por gente com cara afeminada de casaco
vermelho e calça branca.
Mas
porco a gente não vê emoldurado. Quando muito, pendurado na cozinha, já em
estado de linguiça. Ninguém agrada o porco, ninguém posta carinha de porco nas
redes sociais e nem faz campanha de adoção.
Porco
só existe para ser usado, ao contrário da barata, que não serve para nada. No
entanto, quando alguém não faz nada ou só atrapalha é chamado de espírito de
porco. Não seria o caso de, ao menos, mudar o xingamento para espírito de
barata?
Não
muda as coisas para o porco, e muito menos para a barata, mas já é um começo.
Rio, abril de 2019
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