segunda-feira, 22 de abril de 2019

Inspiração


Atribui-se a Thomas Edison a afirmativa de que a genialidade depende de 1% de inspiração e 99% de transpiração. Já me disseram que isso era invenção de Tom Jobim, talvez sem o rigor matemático dos percentuais. Afinal, cada qual com seu talento.

A falta de inspiração tem sido tema de inspiração para muitos filmes sobre escritores que, em algum momento, se viram diante da mais aterradora falta de inspiração, e por mais que transpirem, parece que nunca mais conseguirão escrever uma só linha. Este parágrafo demonstra que escrever a palavra inspiração é fácil. O difícil é trazê-la.

Antes do computador, a cena ficava mais dramática. O sujeito escrevia duas linhas na máquina de escrever, fazia uma careta de ódio e desespero, arrancava o papel com violência, amassava e jogava no lixo. Para a cena ficar mais intensa, raramente acertava o cesto de papéis e era dado um close no cinzeiro cheio. Ainda se fumava muito naquela época.

Recentemente assisti a um filme, mais atual, em que o escritor atira pela janela o notebook, após derrubar todos os móveis e quebrar a impressora. Depois disso, vai ao quintal e vê que o computador, com a tela trincada, ainda vive. Ele se lembra de uma frase que ouviu da mulher por quem desconfia que já se apaixonou, leva a máquina de volta para o quarto e começa a escrever o romance que, como não podia deixar de ser, se torna um sucesso.

Isso é coisa de homem. Nunca assisti nada parecido com uma mulher, talvez elas não fiquem sem inspiração, ou talvez fiquem e não se incomodem com isso. Quem sabe deixam a escrita de lado e vão falar alguma frase inspiradora no ouvido de um homem. Passam de inspiradas a inspiradoras.

Há quem atribua ao álcool um poder inspirador. Além do cinzeiro, realmente há sempre um copo de alguma bebida, aparentemente destilada. É raro ver uma cena de escritor com uma lata de cerveja, ou mesmo com uma taça de vinho. O comum é uma garrafa de bourbon ou coisa parecida. Comigo não deu certo. Escrevo muito quando bebo, e jogo tudo fora quando fico sóbrio. Já pensei se não seria o caso de fazer escolhas: parar de escrever ou parar de beber. O melhor é parar de pensar nisso.

Tem um truque que é treinar a escrita. Se não tem nenhuma idéia, escrever sobre o que estiver pensando. Aí não tem desculpa. A gente pode não estar fazendo nada, mas sempre está pensando. Coisa boa ou coisa ruim, mas sempre tem um pensamento zumbindo. Quem diz que consegue ficar sem pensar em nada é porque nunca tentou meditar. Mente quieta deve ser só uma força de expressão.

A cada livro que leio, me pego pensando o que inspirou o autor e porque não tive a mesma idéia antes. Já pensei se não filtro demais, se me censuro além da conta, se procuro advinhar o que os leitores irão pensar, se é que haverá leitores para o que escrevo. O fato é que acabo parando antes de alcançar a velocidade de cruzeiro, que é quando a escrita flui e nada faz com que seja interrompida, nem mesmo uma catástrofe. Penso que em Pompeia deve ter escritores petrificados, com o olhar de quem nem percebeu a fúria do Vesúvio.

Há pouco li algo sobre a vida de Nelson Cavaquinho, sambista da metade do século passado e que passava as noites de bar em bar, com seu inseparável violão, o que não seria incomum se o nome artístico não fosse cavaquinho. Nelson começava a noite bebendo, é claro, afinal estava em um bar. E ali mesmo, em meio a tanta gente, que certamente não ficava em silêncio, compunha músicas que falavam de bares, bebidas, violão e mulheres. Não sei se tinha tantas mulheres nos bares naquela época, mas a vontade de que estivessem por perto já servia de inspiração.

A gente se inspira pelo que tem e pelo que perdeu. A diferença está no resultado final. Quando temos, produzimos coisas alegres e quando perdemos falamos sobre arrependimento. Bem, isso é para gente normal. O sujeito estranho mistura perda com vingança ou morte. Aí é melhor ficar de olho.

Há quem faça dos filhos seu tema de inspiração. Nando Reis fez músicas para Sophia, Zoé e Sebastião. Ele já falou dos outros dois – Ismael e Theodoro – na música Bom Dia. Não é difícil quando os filhos tem nomes palatáveis, mas e dupla caipira, como é que faz? Haja criatividade para botar Mirosmar e Welson em uma letra. O melhor é fazer com que eles sejam músicos e mudem o nome para Zezé Di Camargo e Luciano.

Cursos para escritores existem aos montes, e, dependendo do que se propõem a ensinar, acho qté que funciona. Leveza e dinâmica da escrita, regras elementares de gramática e ortografia, diagramação, estrutura, enfim, tudo aquilo que ajudar na formatação da história é válido. Só não consigo imaginar como se ensinaria inspiração.

O comum entre os anúncios destes cursos é a foto de um computador e uma caneca de café ao lado. Não sei se dá certo, mas a imagem é inspiradora. Quando vejo me dá uma vontade incontrolável de beber café, mas aí nem precisava do computador, talvez um pão de queijo caisse até melhor.

Já tentei escrever aleatoriamente até que o texto engrenasse. Isso dá certo com palestras. O orador começa contando uma história que aparentemente não tem nada a ver com o tema central da palestra. Dez ou quinze minutos depois, fica claro que realmente não tem, mas aí a platéia já está atenta. Por consideração, o palestrante faz uma ligação (agora é chamado de link) entre a introdução e o assunto principal. Geralmente fica estranho, mas o público de palestra é diferente do público de música. Então não há lugar para vaias, por sorte.

No cinema é mais fácil. Se o roteirista for famoso, não precisa ter nexo nenhum. Se não der para entender, a culpa é de quem assistiu, que não entendeu a proposta. Se o enredo for sem pé nem cabeça, basta fazer as cenas bem escuras e chamar o filme de noir. Se não conseguir finalizar a história, termina o filme antes de acabar e diga que é cult. Não tem problema. A culpa acabará recaindo sobre o diretor, ou, quem sabe, nos atores. Escolha alguns em fim de carreira que a crítica vai dizer que estão decadentes. O autor sempre será preservado.

Esta semana almocei com um amigo, dos mais inteligentes, e conversamos sobre maneiras de fazer sucesso, inclusive financeiro. Ele, bem mais novo do que eu, parece ter mais pressa e já pensou em um atalho infalível: compor música sertaneja. Confessei que não me vejo com talento para isso, e ele então me explicou que esse é o segredo. Não pode ter talento, senão a música não vende.

Ele me explicou ter elaborado essa teoria depois de ler sobre a música Jeniffer, que é mesmo espantosa, criada por oito amigos durante uma pausa para o lanche. Eles estavam ensaiando e compondo “pra valer”, quando resolveram fazer uma brincadeira. Se alguém perguntar quais as músicas que eles compuseram, ninguém vai saber, mas a que foi feita durante o intervalo explodiu e faturou como nunca.

Há algum tempo assisti o filme José e Pilar, um dos melhores documentários sobre a vida de um artista. Hoje, estou pensando em ver de novo, mas com outro olhar. Às vezes penso que esse recolhimento que o Saramago buscou pode mesmo ajudar a trazer inspiração. Já tenho minha Pilar, só falta o esconderijo.

Não me agrada muito a idéia de uma ilha vulcânica, mesmo Lanzarote sendo tão bonita. Já pensei em Colônia de Sacramento, Provence (Peter Mayle foi feliz ali) e Mauá. Todo lugar que lembra Passa Quatro me atrai. Bel acha que então era mais prático me esconder em Passa Quatro, a original. O problema é que as pessoas lá querem vender as casas pelo preço da Provence. Desisti do confinamento, pelo menos por enquanto.

Uma vida rica inspira, mas uma vida rica não é uma vida cheia de compromissos, de bens, de pessoas, de aparências. É uma vida cheia de exemplos, de vivências, de amores, de lembranças e de esquecimentos. É um eterno filtrar, escolher e guardar. É ser feliz sem precisar explicar o porquê.

Inspirar é viver. Se falta inspiração, talvez esteja faltando vida.

Rio, abril de 2019

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