quarta-feira, 24 de abril de 2019

Cheiros


Trago minhas melhores lembranças nos cheiros.
Perfumes que marcaram épocas, registraram namoros, deixaram saudades.
Cheiro de mato molhado, de grama cortada, de jardins de casas idas, cultivados por quem não está mais aqui.
Cheiro de vida das flores que comemoram, cheiro de tristeza das que fazem as despedidas,
Cheiro de chuva na terra, no asfalto quente, na calçada, no centro da cidade, no quintal.
Cheiro de verão, de sol, de natais passados, de férias, de passarinhos, de piscina, de praia.
Cheiro de fumaça de carro, de moto, de trem, de estrada, de floresta queimada, de incinerador de lixo, que hoje os prédios não tem mais, cheiro de incenso, cheiro de cigarro de pai, cigarro de palha, cigarro de noitada, de baseado.
Cheiro de bebida e de vômito. Cheiro de café amargo.
Cheiro de quem saiu do banho e de quem parece que nunca entrou.
Cheiro de quem escova os dentes e de quem não sabe o que é isso.
Cheiro de comida boa,  de churrasco, de feijoada, de pizza, de peixe frito.
Cheiro de leite azedo, de ovo choco, de banheiro de rodoviária.

Tem cheiro de todo jeito, e cada um desperta o que a gente quer.
O cheiro de lenha, ou da fumaça da lenha queimada, me leva para a casa da minha avó, que usava fogão de lenha. Em Passa Quatro ninguém usava fogão a gás.

Fogão de lenha só apagava à noite, e mesmo assim ficava um calorzinho para o gato dormir, mas no fim da tarde o cheiro que saia das chaminés tomava a cidade inteira. Era como um aviso para o frio da noite que se aproximava.

Era hora de aproveitar a água quente que vinha da serpentina do fogão para tomar banho sem congelar. Depois do banho, um gole para não resfriar e para abrir o apetite, que a janta já estava quase pronta.

Hoje fogão a lenha só nos lugares muito pobres, ou em restaurantes típicos, que fazem a comida no fogão a gás e botam no fogão de lenha para parecer que foram feitos lá.

O fogão de lenha virou vilão. O responsável pela comida que diziam mais gostosa, mata muita gente de doenças respiratórias. Tem gente que nunca botou um cigarro na boca e teve câncer de pulmão. Os monges antigos também   morriam assim, por causa do incenso, mas um pouquinho só não mata ninguém.

As pizzarias a lenha e as churrascarias que usam carvão atraem mais gente, por causa do cheiro. Na vizinhança há uma pizzaria com forno a lenha. Não há uma vez que passe por perto e não me lembre de uma época tão boa da minha vida, o que não é difícil, porque todas as épocas da minha vida são boas.

Alguns momentos foram tristes, mas só sentimos tristeza quando acaba alguma coisa que foi muito boa. Então vou me lembrar das coisas boas. Das tristes não preciso me lembrar. Ela mesmo se encarrega disso, se me pegar desprevenido.

Tem gente que escuta música para recordar, ou veem fotos. Eu gosto de cheiro, mas não existe aparelho para reproduzir cheiro antigo. Não posso queimar lixo dentro de casa para lembrar de quando ia à praia de Copacabana, no tempo em que os edifícios da Atlântica incineravam suas lixeiras. Podia poluir, mas não precisava desses caminhões barulhentos recolhendo lixo.

Também não posso fazer uma fogueira no quarto e pensar que estou em Minas Gerais, nem fumar para lembrar do meu pai, senão vou matar essa saudade mais cedo do que pretendo.

Para lembrar tem os perfumes. Uma vez minha mãe me trouxe um perfume chamado Lancaster, comprado na zona franca de Manaus, que é onde se comprava produtos importados com preços razoáveis. Se bem que ela foi de navio, e a economia não deve ter sido assim tão evidente.

O tal Lancaster tinha um cheiro inconfundível. Acho que meu pai também usava, mas era um cheiro de reuniões festivas do Rotary Club, onde os sócios podiam levar as famílias. Talvez por ser um programa meio chato, fiquei com algumas lembranças.

Dizem que a primavera tem cheiro, talvez das flores, mas sinto mesmo é o cheiro do inverno. Talvez por ser a estação que mais gosto. Se me perguntarem qual o cheiro do inverno, acho que não saberia responder. Tem coisas que a gente sente mas não consegue dizer. É igual a liberdade. Poucos sabem explicar, mas ninguém vive sem ela.

Namoro tem cheiro, e por épocas. Algumas coisas, para mim, tem cheiro de namoro novo. Não é só o perfume que a gente usava no começo do namoro, mas também de outras coisas, como o cigarro de palha, que já não fumamos mais, do arroz de carreteiro, dos incensos e das casas. Morávamos separados.

Hoje vivemos juntos. As lembranças do namoro novo não são nostalgicas, mas revivem momentos de individualidade, que soubemos aproveitar para fazer uma vida em comum.

Lembranças devem ser assim. Base para o momento presente. Tenho saudades de muitas coisas, mas certamente não gostaria de reviver. Foi, passou e hoje me fortalece. Trago dentro de mim, como parte de mim, como minha essência.

Essência é um perfume. Essência também tem cheiro.


Rio, abril de 2019

Nenhum comentário:

Postar um comentário