Se
já em mim estava disseminada a falta de ordem para ler, agora me assola a
desordem também para escrever. Minha mãe, leitora incorrigivelmente contumaz,
repreende quem não lê um livro de cada vez. Diz que é falta de disciplina. Não
sei até que ponto quero ser disciplinado para ler, se em tantas outras coisas
onde se exige disciplina já a abandonei.
Há
algum tempo, como acordo invariavelmente cedo, me dispus a escrever na primeira
hora do dia, o que consegui levar a termo por um razoável período. Se muito não
produzi, foi mais por falta de capacidade do que por falta de vontade. Hoje,
porém, me deparo, ao abrir o editor de textos, com uma enormidade de arquivos
incompletos, aguardando que minhas mãos dêem a eles qualquer prosseguimento.
Não precisa ser nada brilhante, mas que ao menos os conclua. Não há sentimentos
nas letras (nas palavras há), mas, se houvesse, as minhas sofreriam de abandono
ou, pior, de intenso complexo de inferioridade, ao pensar que foram abandonadas
por incapacidade de despertar algum tipo de interesse.
Lendo
Ana Cassia Rebelo, talentosa escritora portuguesa que fez de sua cruz um
trampolim, percebo o quanto é fácil dar vida às páginas em branco, falando da
vida e dos dias como exatamente o são. Sem enfeitar e sem enganar, apenas
descrevendo. E os dias, como a vida, são imprevisíveis. Por isso, o melhor é
que se escreva sobre eles no passado, pois aí há a certeza de que aconteceram.
O
dia começa com a lembrança dos sonhos, que se não registrados pouco duram na
memória. Talvez seja esse mesmo o papel dos sonhos, trazer um momento de
reflexão para o que queremos dizer a nós mesmos, se é que os sonhos são a voz
do nosso inconsciente. Já tentei anotar os sonhos, com a ajuda de um caderninho
ao lado da cama, mas isso só funcionou até a próxima vinda da arrumadeira, que
deve tê-lo guardado em local onde jamais sonharia encontrar, como de fato não o
encontrei.
Se
há desordem na primeira atividade diária, é fácil imaginar como serão as
subsequentes. E aí talvez se explique o porquê de ter um cartão de crédito
sangrado a cada mês com o pagamento da academia, onde quase nem me lembro mais
onde fica. Também assim se dá com os remédios prescritos pela terapeuta
ayurvédica, bonita como são todas as mulheres que se dispõem a cuidar de mim. Se
a medicina indiana é a mais antiga e eficiente, que ao menos fosse modernizada,
a ponto de sintetizar todos os pós e óleos em um comprimido apenas e que não
tivesse hora certa para tomar.
Agora
me desafio a aprender um novo idioma, e sem alguém para me ensinar, o que deve
funcionar, já que, de todos os professores que tive, poucos foram os que não
tive vontade de esganar, principalmente porque jamais cogitaram a possibilidade
de que não sabiam ensinar, quando a quase totalidade da turma terminava o curso
exatamente como entrou. Em alguns casos até pior, pois desaprendiam um pouco do
português.
Logo
que comecei a fazer terapia, e isso deve ter sido pouco após a morte de Freud,
falei que não gostava muito da palavra Disciplina. Pronto, era o que faltava para
a terapeuta (essa não era tão bonita e nem eu era tão exigente), que me
perguntou porque isso me incomodava tanto. Não me lembro de dizer que isso me
incomodava, só que nao gostava da palavra, mas na terapia não vale o excludente
de culpabilidade. Se falei que não gostava era porque tinha alguma coisa a mais
e eu não queria admitir. Estranhei, pois ninguém me obrigou a ir até lá. Se fui
porque quis e pagava as sessões, qual o motivo de não cooperar para que a
terapia fosse bem sucedida? Acho que ela usava a mesma desculpa dos professores
de idiomas.
Fiz
serviço militar e ali a disciplina era mais do que exigida. Era a razão de
existir de todo aquele organismo. Em um país que a última vez que se meteu em
uma guerra usou mosquetão e só foi porque se ofereceu, a tendência a dar valor
exagerado a tudo só pode ser para espantar o tédio. A patir do hasteamento da
bandeira, quando a população mais ou menos normal ainda deve estar acordando, já
se percebe a vontade de mostrar serviço. Ao invés de pendurar o pano no cabo e
içar até a ponta do mastro, é exigida a formatura de alguns soldados em posição
de sentido e um corneteiro fazendo um toque pausado, como se o instrumento
estivesse entupido. Se eu fosse um
general mandava deixar a bandeira lá em cima até que ficasse em um estado tão
deplorável que precisasse ser substituída. Nesse momento talvez até fizesse a
cerimônia, para que o corneteiro não desaprendesse o toque gago, mas durante
muitos dias os soldados dormiriam até mais tarde.
Fui
instrutor de um programa comportamental, com metodologia americana, onde a
disciplina era fundamental, não só para que o conteúdo fosse repassado no tempo
certo, mas, principalmente para que fosse aplicado pelos participantes após a
conclusão. Apresentava uma agenda onde cada um faria sua programação semanal,
atribuindo a cada dia uma atividade relevante, tanto pessoal quanto
profissional. Os exemplos eram previsíveis: atividades físicas, estudos,
reuniões com a equipe, contatos com clientes, etc. Percebi, no entanto, que as pessoas anotavam
de forma automática. Não parecia que estavam empolgados e muito menos que
aquilo seria cumprido, afinal, mesmo com roupagem diferente, não se tratava de
nenhuma novidade. Aí, então, resolvi provocar e disse que eles teriam que
agendar quando fariam sexo. Alguns brincaram perguntando se havia uma agenda
anual, mas a maioria pareceu incomodada.
Temos
disciplina quando somos mandados, e talvez por isso deixamos correr frouxo naquilo
que é fundamental, como a felicidade. Ninguém se recusa a cumprir uma ordem,
mesmo que sem sentido. Não sendo manifestamente ilegal e nem trazendo risco à
integridade física, raramente não é cumprida. Mesmo em casos de determinações
absurdas, há quem as cumpra porque não saberiam conviver com a indisciplina. Um vez a Bel me pediu para fazer alguma coisa
e, por esquecimento, não fiz. Brincando, falei que não recebo ordens, mas
ela rebateu dizendo que antes de ser profissional liberal, eu as recebia no meu
antigo trabalho. A diferença é que eu
recebia ordens mas não cumpria, o que é mesmo que não receber. Nem todo mundo é
tão disciplinado assim, e nem por isso é infeliz.
Rio, junho de 2019
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