sexta-feira, 21 de junho de 2019

Desordem


Se já em mim estava disseminada a falta de ordem para ler, agora me assola a desordem também para escrever. Minha mãe, leitora incorrigivelmente contumaz, repreende quem não lê um livro de cada vez. Diz que é falta de disciplina. Não sei até que ponto quero ser disciplinado para ler, se em tantas outras coisas onde se exige disciplina já a abandonei.

Há algum tempo, como acordo invariavelmente cedo, me dispus a escrever na primeira hora do dia, o que consegui levar a termo por um razoável período. Se muito não produzi, foi mais por falta de capacidade do que por falta de vontade. Hoje, porém, me deparo, ao abrir o editor de textos, com uma enormidade de arquivos incompletos, aguardando que minhas mãos dêem a eles qualquer prosseguimento. Não precisa ser nada brilhante, mas que ao menos os conclua. Não há sentimentos nas letras (nas palavras há), mas, se houvesse, as minhas sofreriam de abandono ou, pior, de intenso complexo de inferioridade, ao pensar que foram abandonadas por incapacidade de despertar algum tipo de interesse.

Lendo Ana Cassia Rebelo, talentosa escritora portuguesa que fez de sua cruz um trampolim, percebo o quanto é fácil dar vida às páginas em branco, falando da vida e dos dias como exatamente o são. Sem enfeitar e sem enganar, apenas descrevendo. E os dias, como a vida, são imprevisíveis. Por isso, o melhor é que se escreva sobre eles no passado, pois aí há a certeza de que aconteceram.

O dia começa com a lembrança dos sonhos, que se não registrados pouco duram na memória. Talvez seja esse mesmo o papel dos sonhos, trazer um momento de reflexão para o que queremos dizer a nós mesmos, se é que os sonhos são a voz do nosso inconsciente. Já tentei anotar os sonhos, com a ajuda de um caderninho ao lado da cama, mas isso só funcionou até a próxima vinda da arrumadeira, que deve tê-lo guardado em local onde jamais sonharia encontrar, como de fato não o encontrei.

Se há desordem na primeira atividade diária, é fácil imaginar como serão as subsequentes. E aí talvez se explique o porquê de ter um cartão de crédito sangrado a cada mês com o pagamento da academia, onde quase nem me lembro mais onde fica. Também assim se dá com os remédios prescritos pela terapeuta ayurvédica, bonita como são todas as mulheres que se dispõem a cuidar de mim. Se a medicina indiana é a mais antiga e eficiente, que ao menos fosse modernizada, a ponto de sintetizar todos os pós e óleos em um comprimido apenas e que não tivesse hora certa para tomar.

Agora me desafio a aprender um novo idioma, e sem alguém para me ensinar, o que deve funcionar, já que, de todos os professores que tive, poucos foram os que não tive vontade de esganar, principalmente porque jamais cogitaram a possibilidade de que não sabiam ensinar, quando a quase totalidade da turma terminava o curso exatamente como entrou. Em alguns casos até pior, pois desaprendiam um pouco do português.

Logo que comecei a fazer terapia, e isso deve ter sido pouco após a morte de Freud, falei que não gostava muito da palavra Disciplina. Pronto, era o que faltava para a terapeuta (essa não era tão bonita e nem eu era tão exigente), que me perguntou porque isso me incomodava tanto. Não me lembro de dizer que isso me incomodava, só que nao gostava da palavra, mas na terapia não vale o excludente de culpabilidade. Se falei que não gostava era porque tinha alguma coisa a mais e eu não queria admitir. Estranhei, pois ninguém me obrigou a ir até lá. Se fui porque quis e pagava as sessões, qual o motivo de não cooperar para que a terapia fosse bem sucedida? Acho que ela usava a mesma desculpa dos professores de idiomas.

Fiz serviço militar e ali a disciplina era mais do que exigida. Era a razão de existir de todo aquele organismo. Em um país que a última vez que se meteu em uma guerra usou mosquetão e só foi porque se ofereceu, a tendência a dar valor exagerado a tudo só pode ser para espantar o tédio. A patir do hasteamento da bandeira, quando a população mais ou menos normal ainda deve estar acordando, já se percebe a vontade de mostrar serviço. Ao invés de pendurar o pano no cabo e içar até a ponta do mastro, é exigida a formatura de alguns soldados em posição de sentido e um corneteiro fazendo um toque pausado, como se o instrumento estivesse entupido.  Se eu fosse um general mandava deixar a bandeira lá em cima até que ficasse em um estado tão deplorável que precisasse ser substituída. Nesse momento talvez até fizesse a cerimônia, para que o corneteiro não desaprendesse o toque gago, mas durante muitos dias os soldados dormiriam até mais tarde.

Fui instrutor de um programa comportamental, com metodologia americana, onde a disciplina era fundamental, não só para que o conteúdo fosse repassado no tempo certo, mas, principalmente para que fosse aplicado pelos participantes após a conclusão. Apresentava uma agenda onde cada um faria sua programação semanal, atribuindo a cada dia uma atividade relevante, tanto pessoal quanto profissional. Os exemplos eram previsíveis: atividades físicas, estudos, reuniões com a equipe, contatos com clientes, etc.  Percebi, no entanto, que as pessoas anotavam de forma automática. Não parecia que estavam empolgados e muito menos que aquilo seria cumprido, afinal, mesmo com roupagem diferente, não se tratava de nenhuma novidade. Aí, então, resolvi provocar e disse que eles teriam que agendar quando fariam sexo. Alguns brincaram perguntando se havia uma agenda anual, mas a maioria pareceu incomodada.

Temos disciplina quando somos mandados, e talvez por isso deixamos correr frouxo naquilo que é fundamental, como a felicidade. Ninguém se recusa a cumprir uma ordem, mesmo que sem sentido. Não sendo manifestamente ilegal e nem trazendo risco à integridade física, raramente não é cumprida. Mesmo em casos de determinações absurdas, há quem as cumpra porque não saberiam conviver com a indisciplina.  Um vez a Bel me pediu para fazer alguma coisa e, por esquecimento,  não fiz.  Brincando, falei que não recebo ordens, mas ela rebateu dizendo que antes de ser profissional liberal, eu as recebia no meu antigo trabalho.  A diferença é que eu recebia ordens mas não cumpria, o que é mesmo que não receber. Nem todo mundo é tão disciplinado assim, e nem por isso é infeliz.


Rio, junho de 2019

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