Um escritor argentino relata sua
mania por cadernos. Não consegue sair de uma livraria sem comprar um ou mais,
mesmo que não tenha a menor idéia do que fará com a coleção que já toma conta
de sua casa.
Acho muito engraçado o jeito de contar
coisas do dia-a-dia como se só acontecessem com ele. Essa compulsão por
cadernos me faz rir por desespero, acredito, porque também não sei mais o que
faço com as dezenas que invadem minhas mesas, gavetas e armários.
Se estivessem escritos, ainda que
incompletos, não me assustaria a ponto de acreditar ser o sintoma de alguma
patologia não descoberta, mas raros são os que estão minimamente usados. A
maioria é tratada com tamanho cuidado, como se fossem filhos a quem jamais
permitiria que se sujassem, principalmente com tinta de caneta.
Não apenas os cadernos, mas blocos
e cadernetas também são quase uma obsessão. Vejo neles características
diferentes que não existem, a não ser no meu desejo de que cada um tivesse sua
própria identidade. Já comprei cadernos por me impressionar com a beleza inédita
de sua capa, da encadernação incomum, da lombada e do cheiro. Levei-o com
tamanho cuidado até chegar em casa e botá-lo junto a outro, idêntico.
Cadernos não se enchem sozinhos.
Precisam de mãos e canetas. Mãos já as tenho, e canetas também, mas, para um
caderno especial, não pode ser qualquer uma, e a busca da pena ideal se
transforma em mais andança, em mais procura, em busca daquilo que não se sabe o
que é.
Não há papelaria próxima que não
visite sempre. E sempre pode significar até mais de uma vez no mesmo dia. Já
não me constranjo com o olhar levemente piedoso que vendedores mais acostumados
lançam, e já não se dispõem a entender o que pretendo.
Quando um vendedor se aproxima e
pergunta se quero alguma ajuda, respondo que não. Antes dizia obrigado, só
estou dando uma olhada. Depois suprimi a parte em que estou dando uma olhada,
porque isso ele pode concluir. Depois parei de dizer obrigado, pois a educação
parece liberar um tipo de feromônio.
Todas as vezes em que fui gentil
para dizer que não precisava de nada, o vendedor (ou a vendedora, para explicar
e descaracterizar que a coisa tenha a ver com gênero) se sentia de tal forma atraído
que disputava com minha sombra para ver quem ficava mais próximo.
Agora, digo não, um seco não e, sem
maiores explicações, começo a olhar os mais diferentes itens, causando embaraço
nos atendentes, que, mesmo sumariamente dispensados, continuam a me observar
com segura distância.
Às vezes, pego uma coisa qualquer e
examino mais detidamente. Da mesma forma que minha cachorra, quando dou a
entender que repartirei o que estou comendo, um vendedor mais ousado se
aproxima perigosamente e passa a dar explicações (a cachorra não dá
explicações, apenas late). Nessa hora largo tudo e vou para o outro extremo da
loja, interrompendo a ladainha e deixando que fale sozinho.
Ha pouco tempo, um deles começou a
me explicar o que tinha dentro da caixa que levantei. Devo ter cara de tapado,
pois a tampa tinha a foto de um trem e, com letras garrafais, a expressão Trem
Elétrico. Quando falei que tinha uma leve desconfiança de que era um trem, ele
me explicou que era de brinquedo. Se não me avisasse, talvez estivesse lá até
agora, esperando a hora de embarcar.
Voltando aos cadernos e as canetas,
os dois tem algo em comum, servem para escrever, já que desenhar não é minha
melhor habilidade. Mesmo que minha vida fosse tão segmentada, a ponto de não
poder ser descrita em apenas um caderno e necessitasse de cores e traços diferentes,
ainda assim quarenta cadernos e cinquenta canetas pareceria um exagero, mas é
um pouco menos do que tenho.
Além de canetas tinteiro, que me
deixam com os dedos azuis como os de um avatar, esferográficas de hotéis
transbordam das canecas que deixaram seu lugar na cozinha e foram transferidas
para o serviço burocrático. Passam anos espremidas e de cabeça para baixo, na
esperança de que assim se mantenham funcionais, como me ensinaram. Com honrosas
exceções, quando convocadas a retornar à atividade se vingam deixando apenas um
arranhão no papel, sem qualquer vestígio de tinta.
Se mesmo depois de várias
tentativas só restar um monte de folhas rasgadas, são deslocadas para uma gaveta
e esquecidas por mais algum tempo, até que uma sanha organizadora se manifeste
e eu as mande para longe do meu alcance. Raras são as que vão para a lata do
lixo. Porteiros são quase sempre os agradecidos receptadores das inúteis.
Ainda por muito tempo passo pela
portaria e vejo algumas anotações, com letras pontilhadas em papéis
amarrotados, e percebo que lhes foi dada uma última chance de mostrar serviço.
Algumas passam pelo suplício das bruxas da inquisição e tem sua ponta
esquentada por isqueiros, para ver se a tinta volta a fluir ou talvez para se
livrar de alguma possessão.
Todas, invariavelmente, estão
mastigadas como se saíssem de uma aula de escrita criativa para cachorros
loucos. Não sei, mas acho que eram mais felizes comigo, mesmo viradas para
baixo e espremidas na caneca.
Manias custam dinheiro, não só para
gastar nas papelarias como também para pagar psicólogos. Minha terapeuta pode
me ajudar em outras questões, mas não nesta, pelo menos é o que sua mesa cheia
de blocos e canetas dá a entender.
Mesmo quando em sofrido desprendimento
dou um de meus cadernos, desperto um lado reprovável, até então oculto, de
minha personalidade: a cleptomania. Minha filha recebeu uma caderneta que eu
havia comprado para alguma ocasião especial. Ia para um evento importante e
imaginei que faria bonito com o presente. Mas, heresia das heresias, se
esqueceu de levar o mimo e fez as anotações no celular. Da mesma forma como
foi, a caderneta voltou, desta vez surrupiada, e hoje, segura e reconciliada comigo,
espera a tal ocasião especial.
Poderia estar escrevendo agora com
uma antiga caneta tinteiro Parker 51, no caderno Moleskine com encadernação de
luxo que dormita em minha mesa há mais de dois anos. Falta coragem para
despertá-lo de seu sono descomprometido e correr o risco de fazer com que se sinta
incapaz, como deve acontecer com seus antecessores, que, após duas ou três
páginas escritas, foram deixados de lado. Deve ser como o abrupto rompimento de
um amor, ou como uma broxada, onde os dois se sentem culpados.
Às vezes penso que a mania de perfeição
é inimiga da criatividade. Não fosse por isso, escreveria furiosamente e sem
remorso, dando trabalho a cadernos e canetas. Não me prenderia em arroubos de
afeto e apego, mas, por outro lado, este texto não existiria.
Sei não, acho mesmo que a
inspiração vem da vida, e vida sem manias não tem graça. Já vi muita gente rindo
de maluco, mas nunca de psiquiatra.
Rio, março de 2018
Um assunto simples como cadernos e canetas foi capaz de demonstrar o grande poder de observação que o autor sempre teve. Bom vê-lo em ação. Parabéns!
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