sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Propósito


Parece que o mundo não pode ser vivido sem um propósito, pelo menos é o que centenas de livros vendidos em aeroportos nos dão a entender. Seja escrito por um monge, um viciado arrependido, um executivo ou uma estrela de cinema, dá no mesmo.

Será mesmo que este propósito não pode ser construído ao longo da caminhada? Se não fosse assim, os bebês não sairiam do berço enquanto não estivessem com o plano de voo definido. A vida é um aprendizado para tudo, até mesmo para a construção de um propósito.

É ingenuidade achar que o propósito não muda, e sei de gente que sofre por acreditar nisso. O propósito pode ser um guia, válido por um tempo, como devem ser todos os guias. Não precisamos de um mapa para saber onde termina nossa trajetória, mas como seguiremos até lá. Se quero ir ao Amazonas, não preciso de um atlas, mas do guia de estradas. Na verdade, se quiser ir ao Amazonas preciso de uma passagem aérea. Tenho preguiça de dirigir por mais de cem quilômetros. Não é porque lá é terra de índios que vou fazer um programa como o deles.

Usar histórias do passado, da gente ou de outras pessoas, não funciona. Se é passado, passou. Pode servir de inspiração ou de aprendizado, mas não de roteiro. Até hoje não sei o que Marco Polo fazia da vida, a não ser viajar, mas é um modelo que trago comigo. Gosto de viajar e me sinto feliz viajando, para qualquer lugar, talvez até para o Amazonas.

Viajando a gente vai acrescentando coisas que não esperava encontrar. Dizem que Marco Polo trouxe o macarrão da China, e fez tanto sucesso com isso que o macarrão virou comida italiana. Se tivesse ido lá apenas para comer arroz, ia chutar o primeiro prato de macarrão que lhe oferecessem achando que era ensopado de minhocas.

A crise de meia-idade nada mais é do que a descoberta de que se caminhou usando o mapa errado, só porque foi emprestado por alguém em que tanto se confiava. Não é porque confio em alguém que vou fazer tudo da mesma maneira. Confio na minha mãe e nem por isso iria parir seis filhos de parto normal. Confio na minha cadela, mas não cheiro bunda de cachorro no meio da rua, e nem em lugar nenhum.

Faço muitas coisas e sou criticado por isso, geralmente por quem não faz quase nada, ou até mesmo nada. Para saber o que é importante, preciso me aventurar pelo que é considerado não importante. Importância é algo pessoal, e não há modo de saber a não ser experimentando. Grandes invenções nasceram das experiências.

Será que Edison tinha o propósito de inventar a lâmpada? Santos Dumont definiu que a vida só teria sentido se inventasse o avião? Talvez não, senão não teria se enforcado com a própria gravata em um hotel no Guarujá. O que alguém que inventou o avião estava fazendo de gravata, de manhã, em um quarto de hotel no Guarujá? Vai entender o que se passa na cabeça de um gênio.
Se propósito fosse uma coisa assim tão boa, não poderia ser usado contra quem faz algo de errado. De quantas surras a gente escapa na infância alegando que não fez de propósito, que foi sem querer. E aí crescemos e os gurus de auto-ajuda nos mostram que para tudo tem de haver um querer, um propósito.

A vida precisa é de sentido, e daí é mais fácil definir um propósito. Viktor Frankl encontrou sentido no sofrimento de um campo de concentração como forma de sobreviver. Sobreviveu e fez de sua experiência o propósito da existência.

Conheço muita gente que tem uma vida sem sentido, e talvez nem percebam, mas eu percebo. Não só eu, mas quem está por perto percebe quando siestá diante de um zumbi. Tem gente que reclama que o tempo demora a passar, mesmo que não esteja esperando nada de especial. Pode ser sintoma de vida sem sentido, vazia, que para ser tolerada precisa passar depressa.

Ontem meu relógio parou. Só descobri quando a atendente da clínica que estou fazendo fisioterapia me olhou de cara feia. Estava quase meia hora atrasado, o que só fez com que ficasse menos tempo na sala de espera. Profissional de saúde não gosta de concorrência. Só ele pode se atrasar.

Saí de lá e fui ao relojoeiro, que não pode trocar a bateria porque não tinha chave para abrir aquela marca de relógio, que, segundo ele, é especial e precisa de ferramentas adequadas para não danificar. Acho que falou só para me agradar, porque deve ter visto logo que é uma falsificação comprada na vinte e cinco de março. Da próxima vez vou pedir para o china uma marca que não precise de chave especial.

Passei o dia sem relógio e a vida passou melhor ainda, mesmo pegando chuva e assistindo palestra de como ter uma vida saudável. Ter vida para mim já é uma coisa saudável, mas para ficar melhor ainda comi canjiquinha e bebi vinho com a mulher que me atura e com a cadelinha que eu aturo. Dá pra achar sentido na vida sem apanhar de guarda nazista.

Rio, dezembro de 2019

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