terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Consulta


Bom dia, tenho uma consulta marcada para dez e meia. Pensei que ia me atrasar, mas ainda faltam cinco minutos.
Pois não, o doutor também se atrasou um pouco e o paciente das dez acabou de entrar. O senhor é o próximo. Para não perdermos mais tempo, me dê a carteirinha do plano de saúde e a identidade. Preencha também esta ficha com seus dados.
Mas, como assim? Como é esse “o doutor também se atrasou”, se eu não me atrasei. O certo é dizer que o doutor se atrasou, sem o também.
Está bem, senhor. O doutor se atrasou. Agora podemos fazer sua ficha de consulta?
Pronto, aqui está. Será que ainda vai demorar para eu ser atendido?
Creio que mais uns quinze ou vinte minutos. Se quiser, tem água e café naquela bandeja. Posso mudar o canal da TV, se o senhor quiser.
Vou fumar um cigarro ali fora. Se ele terminar antes de eu voltar e a senhora puder fazer o favor de me avisar, agradeço.
Bom dia, doutor, disse apertando a mão do médico enquanto entrava no consultório.
Bom dia para o senhor também. Estranhei quando a atendente falou que estava fumando. Não é comum para alguém que esteja reclamando de dificuldade de respiração.
Na verdade, não estava fumando. Estava me masturbando.
Oras, oras. Exclama o médico com seu linguajar de gente mais velha. Se masturbando no corredor de um edifício comercial. O senhor está com algum problema?
Sim, há alguns dias sinto um pouco de dor ao respirar, e como respiro o tempo todo, posso dizer que sinto um pouco de dor o dia inteiro.
Não é a isso que me refiro. Perguntei se está com algum problema porque o senhor foi se masturbar antes da consulta.
Mas, doutor, e para masturbar tem hora certa?
É porque o senhor falou para a atendente que ia fumar e...
Se o senhor, que é homem maduro, ficou tão chocado, imagine se eu dissesse a ela que ia me masturbar? Provavelmente ia achar que era um tipo grosseiro de cantada, o que não era, até porque não achei nada de interessante nela, e, para falar a verdade, só reparei que tem o rosto cheio de espinhas, o que para uma mulher daquela idade não pode mais ser coisa de adolescente. Quem sabe ela também...
Já imaginando que tipo de bobagem ia sair dali o médico interrompeu, enquanto passava álcool nas mãos e pegava o estetoscópio.
Doutor, esse estetoscópio é tão sujo assim? Não tem algum descartável? Hoje em dia tudo é descartável.
Que bobagem é essa, meu filho? Por que o senhor acha que o estetoscópio está contaminado?
É porque o senhor passou álcool nas mãos antes de pegá-lo.
Não me leve a mal, mas passei álcool porque lhe cumprimentei logo após o senhor se masturbar.
Mas eu limpei as mãos.
Me desculpe, mas o senhor me cumprimentou assim que entrou no consultório, sem passar pelo banheiro.
E para limpar as mãos precisa ser necessariamente no banheiro? Trago sempre comigo lenços umedecidos, pois transpiro muito e esta cidade é um forno.
Não vi o senhor com nenhum lenço nas mãos e nem jogando nada no cesto de papéis da recepção.
Joguei dentro da caixa de incêndio no corredor. Aquela com porta de vidro e com uma mangueira enrolada. Se o senhor reparar, o vidro tem uma aberturinha nos cantos e por ali costumo jogar o lenço usado.
Como assim, “costumo jogar o lenço usado”? O senhor costuma se masturbar nos corredores?
Se o senhor prestasse mais atenção, ia se lembrar que falei que transpiro demais, e quando tiro o suor do rosto preciso jogar o lenço usado em algum lugar.
Tá bom, tá bom, já entendi. Mas, me diga, porque o senhor resolveu se masturbar logo agora, mesmo que não tenha hora certa para isso?
Quando a moça falou que a consulta ia atrasar, fiquei um pouco ansioso. E quando fico ansioso, a melhor maneira de relaxar é me masturbando. Doutor, não sou maníaco sexual, se é que o senhor possa estar pensando isso. Não se preocupe. Me acho mais normal do que quem lança mão de remédios para se acalmar. Pelo menos uso um método natural.
Mas quando o senhor demonstra intimidade com as caixas de incêndio dos prédios, como sendo o lugar ideal para guardar os lencinhos usados, pensei se é mesmo só para quando limpa o suor.
O senhor acertou. Sempre que deixam esperando, fico ansioso e tenho que me aliviar. Aqui na avenida tem uma representação da marca do meu relógio e é o único lugar onde posso trocar a pulseira ou a bateria. Chego lá, pego uma senha e não tenho a menor noção de quando vou ser chamado. Como a porta fica aberta, dá para ver do corredor quando está chegando minha vez. Já precisei repetir a dose algumas vezes.
O doutor é mesmo sagaz. Isso é bom para um médico. A chance de descobrir logo o que o paciente tem é bem maior. Às vezes o senhor pode não ser bem compreendido, principalmente por pacientes de plano de saúde, que vão achar que a consulta foi rápida porque os honorários do convênio devem ser baixos.
Realmente, às vezes me pergunto por que atendo convênios. O que recebo é uma ninharia perto de uma consulta particular. Talvez seja uma forma de me manter atualizado e descobrir novos tratamentos.
Se estou entendendo, nós os pacientes de convênio somos uma espécie de cobaia?
De onde tirou essa ideia, meu filho? Estou dizendo que a maior quantidade de pacientes me faz ver sintomas diversos e reações individualizadas aos medicamentos. Ao invés de cobaia, como o senhor insinuou, o paciente de convênio acaba sendo um felizardo. O seu caso, por exemplo, é digno de exame mais acurado. Não pelo pulmão, mas pela forma como o senhor cuida da sua ansiedade.
Mas não vim aqui tratar de ansiedade. Vim tratar de problemas respiratórios.
Sei disso, mas quem falou que o paciente pode ser tratado por partes? As pessoas não são como carros, que podem ter suas peças consertadas sem afetar as demais. Se o senhor se queixa de dor para respirar e se masturba para se acalmar, alguma ligação deve ter. Ou quando se masturba para de respirar ou então quando não respira se masturba. Temos que examinar isso.
Doutor, não é nada pessoal, mas não vou conseguir me masturbar aqui, na sua frente. E não adianta pedir para a espinhenta me ajudar, porque talvez seja pior.
Não seja estúpido, criatura. Não ia lhe pedir isso, mas creio que podemos experimentar alguma medicação leve que o faça relaxar. Pela auscultação não encontrei nada de errado com seus pulmões. O senhor não fuma, não é? Isso é bom, porque geralmente os ansiosos fumam, e muito.
Se o doutor tiver pacientes assim, pode recomendar que se masturbem. O senhor não falou que a vantagem de atender convênios é observar maior variedade de sintomas e tratamentos? Quem sabe não cria um método de cura com meu nome?
Uma curiosidade: quando se masturba, nos cantos dos corredores, nas escadas de incêndio, cuidando para não ser visto, dá para pensar em algo excitante?
Se o senhor se refere a alguma mulher ou cena sexual, esteja certo que não. É só mesmo o movimento físico e a vontade de ser liberado da obrigação. É mais ou menos como o sexo no casamento.
Entendi. Creio que no seu caso a ansiedade está causando essa dor ao respirar. Vamos tentar esse fitoterápico à base de valeriana. Até o sabor é bom. O senhor volte daqui a duas semanas e nem precisa constar como consulta. Será uma revisão desta. Vamos marcar uma hora depois do último horário, para ter certeza de que não vai haver atraso e a possibilidade de uma recaída. Até porque nesse horário o segurança do prédio faz a ronda nos corredores, se é que o senhor me entende. Não há de que. Tenho certeza de que sua respiração vai melhorar muito. Até daqui a duas semanas.
Do interfone, orienta à atendente: peça para o próximo paciente aguardar meia hora e, por favor, consiga para mim uma caixa de lenços umedecidos.

Rio, dezembro de 2019

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